terça-feira, 11 de março de 2008

No Ceará não tem disso não

Por Alex Falcão

Peço licença para citar o rei do baião, mas no Ceará não tem disso não.
Um dos patrimônios de São Paulo é a pressa do cidadão. Com o seu passo acelerado, forte e marcado como quem vive sempre em atraso com a vida.
Vida que passa no trânsito da Marginal, nas filas, no semáforo, na manobra do caminhão. O minuto roubado que buscamos a todo o momento traze-lo de volta.

Se nos perguntássemos o motivo da pressa, a resposta seria convincente?
Justificaríamos a buzina ao carro da frente, a reclamação da fila no supermercado? São Paulo assiste seu povo lutar por esse sopro de tempo a todo instante. Sem perceber, viramos escravos do nosso relógio, cada vez mais alinhado com um atraso constante. Um atraso pra não sei o quê.

A busca pelo tempo perdido se transforma em um perde e ganha diário.
Passamos a contabilizar os 10 minutos perdidos na estação Barra Funda, os 5 minutos recuperados no caixa rápido, os 10 minutos do carro enguiçado, do motoboy atropelado na Rebouças, do sinal fechado. Tudo!

Nessa correria sem fim, tatuada em nossa pele, São Paulo passa a ser uma cidade em movimento. Apreciada somente em movimento, passamos a olhar seus parques de relance, sem um minuto de devoção. Passamos a olhar suas estátuas como vultos, confundidos com qualquer um na rua. Qualquer anônimo, sem nome, sem face, sem história.

Seus prédios são habitados por vizinhos que não se conhecem, que não tem tempo pra si, totalmente inversos as possibilidades que encontramos em cada pessoa. Uma leve decadência do bom dia. Meu pai também diz: “No Ceará não tem disso não”.

São Paulo vive em constante mutação para suprir a sua própria pressa.
Temos entregas pra tudo, supermercados 24 horas, motos malabaristas, ciclistas noturnos, rodízio de carros, faixas de ônibus, helicópteros, ambulâncias encurraladas.

São Paulo tem seu jeito, com ternura e união involuntária.
Quase nos abraçamos no vagão lotado da Sé, ouvimos a respiração um do outro no ônibus e na lotação. Sem querer ou escolher, foi desse jeito que a cidade nos uniu.

Ser diferente em São Paulo não necessita muito esforço. Não precisa mudar o penteado, falar outra língua, ter credo ou cor.
Sentimos-nos diferentes ao desacelerar o passo, deixando a correria de lado, esquecendo as horas, parando de acompanhar o vento. O Paulista escapa da sua cidade andando devagar, lentamente, vendo a cidade passar.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Caros leitores, estamos de mudança. Acompanhem-nos:

terça-feira, 4 de março de 2008

Novidades

Muito bem, muito bem. Mudei a cara do negócio, e sapequei um sistema de estatísticas ali do lado. A única forma que encontrei pra fazer das críticas um link em cada post foi usando o sistema de comentários, trocando a palavra "comentário" por "crítica" e limitando a interação aos participantes do blog. Para isso, porém, eu precisaria enfiar outro sistema de comentários aqui, aberto aos leitores, mas não sei como fazer isso nesse novo sistema do Blogger. Se alguém souber, me diga.

Perseguição ou romaria ?

Por Ana Ziccardi

Adorei a perseguição do Thadeu ao Marco nos comentários. Me lembrou Dom Quixote e Sancho Pança, mas tem algo diferente que não sei identificar...

Gostei dos comentários. Acredito que encontramos nosso caminho.

Afffffffff....

domingo, 2 de março de 2008

São Paulo marginal

Por Fernando Thadeu

Era para ser vinte caixas. Não acreditei que caberiam todas no carro, mas pela persistência dos sabedores de entregas acabei influenciado. O carro parecia mais um avião, com aquele bico levantado e a traseira quase lambendo o chão, lotado de caixas de folhas sulfite.
Por onde vamos e que horas são, foram questões que vieram na minha cabeça quando saímos a caminho de nossa entrega. Estávamos na zona oeste e a entrega seria na zona sul. Saber se o horário é propício e se existe algum caminho para fugir delas é essencial. Paulistano de carteirinha sabe que para atravessar a cidade precisa pegar as famosas marginais Pinheiros ou Tietê, um martírio para sanidade humana, pois o nome marginais, significa trânsito e stress. Seguiríamos pela Marginal Pinheiros até o fim, isto é, trânsito e stress até o final. Precisávamos fugir de comandos policias também, afinal polícia gosta de parar aviões quando estão fora dos aeroportos.
A pessoa que inventou o cigarro com certeza estava em uma das duas marginais em São Paulo. Só assim para enfrentá-las
Logo na chegada na marginal, vimos as pontes que dão acesso a ela forrada de caminhões e carros. Pessoas falando no celular, outras cigarreando como nós, outras discutindo, outras dormindo, e outras querendo passar por cima do mar de veículos. Tudo parado, agradecemos ao inventor do cigarro e começamos o martírio. Depois do mesmo cd tocar três vezes conseguimos passar o carro velho que parava uma das maiores cidades do Mundo.
O caminho a seguir é tranqüilo, cheio de visões abstratas. Arranhacéus sendo construídos, outros mostrando toda sua imponência, favelas, mais carros e todo tipo de construção bem organizada, como trens ao lado de rio, casas nos morros, fios elétricos cobrindo o céu aberto para todos os lados e pontes caindo aos pedaços.
Os motoristas são os personagens de viagens como essa. Vemos desde moleques dirigindo carros velhos e carros novos nunca vistos dirigidos por gente velha. Fechadas, caminhões esbravejando fumaça, mudanças de faixa, típica de gente perdida, carros voltando de ré, para um acerto de caminho tudo que toda cidade grande tem, ou melhor que em São Paulo tem. Não é possível acreditar que isso existe em outras cidades. Crescer assim desorganizadamente não é pra qualquer um. São anos de experiência, e isso São Paulo tem de sobra. São 458 anos. São muitos anos, melhoras são quase impossíveis, e quando tentam causam mais complicações. Somos obrigados a enfrentar essa maratona para servir nossos clientes. Chegar, descarregar e receber nos faz esquecer que São Paulo difícil é essa de se sustentar. Na mesma medida de oportunidades que ela oferece, encontramos obstáculos. Tudo na mesma quantidade, na mesma proporção e com a mesma intenção.

Cidade catótica

Por Marco Aurélio Gois dos Santos

Há quem diga que, por conter tantas culturas e identidades diferentes, São Paulo é uma cidade sem identidade. Pura bobagem. Tudo bem, é verdade que não há comida típica paulistana, nem música popular paulistana, nem folclore paulistano. Mas há — e isso ninguém pode nos tirar — um comportamento profundamente arraigado entre os habitantes de São Paulo, e que pode ser considerado a grande característica comum: o ato de tirar catota no trânsito.

nose_picking Se você que lê estas linhas está agora ao volante, solicito encarecidamente que PARE DE LER e preste atenção na porra do trânsito. Caso contrário, peço que dê uma olhada para o lado da próxima vez que parar num semáforo. Arrisco dizer que há sete ou oito chances em dez de que seu vizinho de trânsito esteja com pelo menos a falangeta dentro de pelo menos uma narina. Uma colega gaúcha diz que os catoteiros foram seu maior choque ao trocar as ruas de Porto Alegre pelas da terra da garoa. Certa feita, disse a um sujeito de Nova Iorque que o povo de São Paulo era adepto do nose picking. Ele disse que isso era louvável. Só depois, quando o cara já tinha voltado para a civilização, me dei conta de que, graças à minha pronúncia maravilhosa, ele tinha entendido no speaking. Deve estar até hoje contando aos amigos sobre a admirável introspecção dos paulistanos.

Muito bem, alguns podem dizer , torcendo (ou cutucando) o nariz, que a sondagem dígito-nasal não é privilégio exclusivo dos paulistanos. É verdade. Mas pessoas de outras plagas são mais discretas: retiram-se da vista alheia para praticar o ato, ou pelo menos o fazem disfarçadamente, aproveitam aquela coçadinha no nariz e tal. Os motoristas paulistanos, por sua vez, catoteiam com empáfia, quase com orgulho. Deve ter alguma coisa a ver com a poluição, é verdade. Imagine a quantidade de fuligem que nos entra pelas narinas após uma hora e meia de tráfego intenso na Marginal Tietê. Aquela sujeira toda irrita as vias respiratórias, se mistura com o muco nasal e... Bom, acho que não preciso explicar em detalhes.

Não podemos, no entanto, botar a culpa somente no ar imundo da cidade. Eu diria que a causa maior é a relação que o paulistano tem com o carro. Para nós, o automóvel não é só um meio de transporte: é extensão de nosso lar, é nosso domínio, nosso habitat, nosso reino sobre quatro rodas. Sentimo-nos totalmente à vontade dentro de nossas máquinas: cantamos, batucamos no painel, falamos sozinhos, soltamos gases e — claro — catamos catota. O interior do carro nos dá a ilusão de privacidade, e é muito fácil esquecer que estamos cercados por vidro translúcido.

E assim, à vontade, vão os paulistanos catoteando pela vida. Uns são recicladores conscientes, e tratam de consumir imediatamente tudo o que tiram do nariz. Outros têm vocação para decorador, e distribuem suas catotas em belos padrões pelo painel do carro, no volante, no teto. Há aqueles que são tímidos e escondem seu produto sob o banco (se as lojas de carros usados dessem 10 reais de desconto por catota encontrada sob o banco do motorista, estariam todas falidas). Existem também aqueles desapegados, que se desfazem de suas bolinhas com um jeitoso piparote. E nem olham para trás.

Já prevejo a reação de alguns cidadãos indignados da metrópole, prontos a me atirarem pedras (ou catotas). Antes que o façam, porém, peço que reflitam por um momento. Finalmente nós, os paulistanos (que somos baianos, paranaenses, japoneses, portugueses, italianos, lituanos, coreanos, judeus, acreanos, libaneses), temos algo que nos une. Isso há de valer alguma coisa, não?

sábado, 1 de março de 2008

As loucuras da paixão

Por Daniel Lucas

São Paulo é a “capital” do Brasil. Certo? Errado. Mas, assim que deveria ser. Quando o tema: Isso só acontece em São Paulo foi escolhido acredito que todos encontraram dificuldades para delimitar um assunto. Conversando com algumas pessoas estava disposto a aceitar sugestões, gostei de algumas e outras não.

A sugestão aceita foi a do meu grande amigo Edemilson: inteligente, exigente, alegre, companheiro. E, vale a pena ressaltar que, ele é grande no peso, ou seja, mais de 100 quilos, mas o tamanho e os quilinhos a mais são proporcionais para abrigar um coração tão generoso que Deus lhe concedeu.

A sugestão de meu amigo foi escrever em relação as quantidades de “filas” no dia-a-dia, mas pensando melhor decidi relatar as estórias contadas numa fila. Segundo o verbete do dicionário: fila é fileiras de pessoas que se colocam umas atrás das outras, pela ordem cronológica de chegada a um ponto de chegada em veículos urbanos, a guichês ou a quaisquer estabelecimento haja afluência de interessados.

Fila é uma palavra que todo paulistano detesta ouvir e, principalmente, participar. Nas filas existem algo interessante e muitas vezes bizarro, são as estórias contadas por alguns acidou integrantes delas.

Certo dia estava na espera da lotação, 3766, destino ao Conjunto José Bonifácio – Itaquera, um bairro de aproximadamente 25 KM do Centro de São Paulo, como era horário de pico a quantidade de pessoas na fila era imensa. Estava eu curtindo uma música maravilhosa de Paula Lima: Só tinha de ser com você, quando fui interrompido com uma risada inexplicável.

Quando olhei para trás, eu não sabia se dava risada da mulher que estava contando uma estória, ou do semblante daquela que escutava. Duas mulheres fantásticas que poderiam fazer sucesso em qualquer emissora de televisão, pela tamanha espontaneidade e pela criatividade ao relatar um acontecimento.

Umas delas contava a respeito de um casal, provavelmente, classe média alta chegando duma festa embriagado. E, mais que ouriçados para uma noite “caliente”, regado a desejos acelerados esqueceram que tinham empregada, assim se entregando “as loucuras da paixão”.

Realmente foi uma loucura, porque essa dupla perfeita, de “palavras e semblantes incoerente”, interrompeu a música e, ainda, fez eu seguir na viagem e descer três pontos após do que deveria.

Agora, vale a pena reclamar das filas em São Paulo? Acredito que não. O que vale é encontramos brechas para nos divertimos em qualquer situação.
Isso só acontece em São Paulo: O que? Pinga? Não. Pimba? Também não. “Vou te falar viu, só pensa naquilo? É claro que não. Estou pensando agora na “fila” que tenho que pegar amanhã.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Putrefação Poética Paulistana

O letreiro vermelho do motel da frente derrama sua luz sanguínea pelo apartamento, profana os lençóis, as paredes e o insone sobre eles.

Me levanto e caminho para a janela. Gosto de observar a cidade do alto do décimo terceiro andar. Me deixo absorver pelo fluxo luminoso da Nove de Julho, como uma artéria aberta.
São Paulo é um bordel decadente. A Praça da Sé, uma cafetina velha e amorosa, que perdeu o viço da juventude. Abraça caminhoneiros, bêbados, velhos doentes e crianças fedorentas não como clientes, mas como filhos cansados e queridos.

Passear a noite pelo Centro Velho é humanizar-se. Sentir o cheiro das sarjetas, esbarrar nos cachorros sarnentos, ouvir o silêncio das ruas. A fedentina da Sé não vêm do esgoto. O cheiro que escorre pelas narinas, pelas entranhas, pela consciência dos mais sensíveis, vêm das pessoas. Peles famintas, flácidas, jogadas sobre os ossos como mortalhas precoces. Respirar o ar podre do Centro te faz entender que as pessoas fedem mais que os cães e as sarjetas. O terror e o prazer da imersão é descobrir que VOCÊ é uma pessoa. E você fede.

Na paulicéia, Bukowski e Baudelaire se tornam unos no fundo de um copo. A Augusta festeja madrugada a dentro. Mini-saias de Indies, góticas, universitárias, prostitutas e travestis se confundem em um mar de pernas cruzadas e abertas. Bacantes e Sátiros celebram sob luzes estroboscópicas. Um templo dionisíaco de ferro e neón, cachaça e gasolina.

Na cidade do concreto tudo é abstrato. O efêmero reina absoluto onde a aparência é moeda corrente. Poetas e mendigos convivem num mesmo corpo. Favelas e botiques respiram o mesmo ar. Cinemas glamurosos e puteiros são o mesmo esqueleto, e tudo morre e nasce diferente no intervalo de um pôr-do-Sol. São Paulo é um organismo em transformação. Uma alma em transição.

São Paulo é uma galeria frankenstein. Violinistas de rua dividem platéia com repentistas nordestinos, grafiteiros sangram arte a céu aberto nas paredes dos museus fechados, crianças e limões trazem o circo para os faróis fechados. A arte da paulicéia faz sorrir pra não chorar.

Ser paulistano é ser batizado na garoa ácida, no heavy metal dos pistões, no ar nicotinado. É olhar para o céu marrom e sem estrelas e extrair a Lua dos postes de luz amarela. Amar o belo e o disforme das ruas, dos rostos, dos restos.

Qualquer um pode nascer em São Paulo, mas só os poetas são verdadeiramente paulistanos.

Plínio Zúnica


Só em São Paulo

São Paulo me encanta. Na adolescência, eu ficava pensando que morar nessa cidade era como ter ganho na loteria. Meu bilhete premiado - a certidão de nascimento - está em frangalhos. Apesar do descuido com o documento, continuo muito orgulhoso de morar aqui. Sinto-me um privilegiado. Foi aqui que me tornei um cosmopolita sem precisar ir para Londres, Tóquio ou Nova Iorque. Foi fundamental me afirmar numa cidade cinza, caótica, enorme, multirracial e cheia de neons. Hoje não se vê tanto neon, mas eles ainda piscam sem ordem nas minhas memórias. Várias regiões do centro da cidade estão marcadas na minha lembrança.

Conheci o bairro da Liberdade tardiamente. Com 20 anos, aproximadamente, fazia um curso pré-vestibular na Rua Tamandaré e um dos amigos de sala morava lá. Nos levava para aquelas ruas movimentadas, coloridas e de postes vermelhos. Disse que num dos restaurantes japoneses havia uma garçonete que era a cara da Nastassja Kinski. À época, me saiu bem caro essa curiosidade. Mas nunca mais deixei de freqüentar o bairro, principalmente por lugares mais baratos, onde o garçom estava mais para Tião Macalé que para atrizes do cinema europeu.

E o bairro sempre tropeça nos meus dias. Ou porque a assembléia do sindicato é perto dali, ou porque estudo no mesmo bairro, ou porque alguns amigos moram na Rua Galvão Bueno. Num desses tropeços, conheci um boteco – ou restaurante, como queiram – chamado “Bentô House”.

Não consigo imaginar esse bar em outra cidade. Ele é o típico boteco brasileiro, mas enfiado no bairro japonês e que serve iguarias orientais. Os garçons são nordestinos ou descendentes, os proprietários orientais e a freguesia muito, mas muito diversa. Lá é fácil ver misturados moradores do bairro – portanto, de olhos puxados – com sindicalistas barbudos, japoneses com pinta de mafiosos, freqüentadores alcoólatras, mulheres chinesas comendo sozinhas, casais de namorados e vários mendigos pedindo dinheiro. Da última vez que estive lá, as mesas que ficam na rua tinham muitos negros. E todos de meia idade. Talvez alguma associação ou comunidade reunida. Uns dez cabeludos com camisetas de rock também faziam muito barulho nessa noite. As pessoas se cumprimentavam, indiferente da mesa de onde chegavam ou saíam. O bar pegava fogo.

Já estive lá na hora do almoço. É quente também, mas com menos álcool circulando e eles não estão para brincadeira. Logo que se entra, uma chamada avisa: “Servimos café, almoço e jantar, Happy Hour e petiscos”. Um sem fim de clientes e muito movimento por quase 20 horas por dia.

A parada durante a noite sempre foi estratégica para mim. Ele fica ao lado da Estação Liberdade do metrô. A intenção é aproveitar o papo até o último minuto antes do último trem, mas não lembro de ter conseguido chegar a tempo uma única vez. Sempre volto com algum ônibus noturno ou táxi. Ali é impossível um papo não ficar interessante e me fazer ir embora na hora certa, seja ele o lançamento de algum filme dos irmãos Cohen, seja como fazer para evitar uma ressaca ou fofocas de manicure e cabeleireiros. Tudo fica delicioso de conversar.

Não é possível cumprir horários com aquele garçom deixando rastros de odores. Guiozas, tempurás, shimejis e vinagretes de polvo e marisco não me deixam partir. E, assim, numa noite dessas, com o metrô fechado, nossa mesa era cerveja gelada e sushis. Minha amiga contava uma estória de manicure que não podia continuar sem comida e bebida. Aliás, um caso típico de um morador de São Paulo. A manicure estava preocupada com um casal gay. Ela era amiga de um deles e percebeu que tomava medicamento pesado. Transtorno afetivo bipolar, segundo ela. “E sabe por quê? Sabe? Porque ele também gosta de mulheres”. Os dois se amam, são casados, mas fazem pouco sexo. Quer dizer, um deles, pois o outro sai com muitas mulheres. “É um absurdo ele tomar remédio por causa disso", dizia minha amiga imitando a manicure. E todos nós também achamos um absurdo naquela mesa, quase no balcão já. Por que alguém tomaria remédio para afirmar a sexualidade? Mas , enfim , o tribunal provisório do Bentô House, direto do balcão sujo , não aprova a decisão do psiquiatra e reprova a resolução dos problemas através de medicamentos.

O bar fecha lá pelas duas da manhã. Infelizmente. E a moça que cuida da limpeza final ainda leva umas cantadas de um japonês com o cabelo pintado de loiro. Joga muito charme pra cima dele e joga muita água nos nossos pés. Volto para casa com a canela molhada, com o coração cheio e terno. Só São Paulo me deixa assim a essa hora. Rendido e satisfeito.


Marcelo Fabri

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Vinícius. Com “U”, por favor.

A cada dia que passa, tenho mais certeza de que São Paulo não tem uma identidade própria. Veja bem, leitor: moro sozinho. Acordo cedo, me arrumo para o trabalho e saio. Cumpro serão o dia todo e depois vou à faculdade. Até aí, tudo normal. Normal para um jovem suburbano que luta diariamente para ganhar a vida.
Quando saio dessa rotina, observo muitas coisas diferentes. Dia desses precisei ir a um cartório resolver um problema. Peguei uma fila grande, como sempre. Afinal de contas, estamos em São Paulo, não é mesmo?
Ouvi muitas conversas. A gestão do governo Lula que está ruim, a falta de emprego, a filha da patroa que estava grávida e não sabia quem era o pai, a televisão que disse que ia chover no fim de semana.
Quando chegou minha vez, a moça do balcão me recebeu como só em São Paulo se recebem as pessoas. Não olhou na minha cara e perguntou meu nome.

- Vinícius.
- Venicio de quê? – Olhei o que ela anotou no papel. Ela escreveu assim mesmo: Venicio.
- Não. Vinícius, com “u”, por favor. E acento no “i”. Vinícius Peixoto.

Ela consertou o erro, me olhou com cara de poucos amigos e continuou com o atendimento.
Na verdade, vejo São Paulo como uma Torre de Babel pós-moderna. Um lugar onde todas as “línguas portuguesas” se encontram. É só observar os diálogos que acontecem nos transportes públicos. Os homens, nordestinos, conversam em ritmo de embolada. Usam um dialeto inteligível apenas para eles.

- Ei Zé, bora lá no CTN hoje?
- Posso não, Tonho. O fidumaégua do meu patrão qué que nós entre mais cedo amanhã.

São Paulo é uma cidade de muitos contrastes. Ela é cosmopolita. E ser cosmopolita, no caso de São Paulo, é um conceito implícito, presente dentro de cada um de seus cidadãos. Como dizer que o Zé do queijo, nascido no sertão do Piauí, não é paulistano? Ou o português da padaria? Ou o japonês que vende comida nas ruas da Liberdade?
Imagine você, leitor, que mesmo eu, criado nas entranhas da Avenida Paulista, nascido e crescido nessa gigantesca metrópole, sou filho de nordestino, neto de húngaro e bisneto de espanhol!
Com toda essa diversidade, muitas vezes temos que soletrar nosso nome, por mais simples que seja. E isso só acontece em São Paulo.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Sem tentativa não há acerto

10º Prêmio Literário CIEE/ABL
Destinado a todos os estudantes de nível superior, de todo o Brasil, regularmente matriculados, independente do ano e do curso.O tema desse ano será: Sem Ética pode Haver Progresso?As inscrições são gratuitas e se encerram dia 30 de abril de 2008.Regulamento e mais informações aqui.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A vida num instante

Por Marco Aurélio Gois dos Santos

Quando viu os faróis que se aproximavam, sua vida inteira lhe passou pela mente em um instante, como um filme. E ainda sobrou tempo para uns extras. Cenas deletadas, erros de gravação, comentários, essas coisas.“Que vida besta, meu Deus…”, ele pensou, enquanto o bendito caminhão punha fim a sua miséria.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A vida em um segundo

Por Plínio Zúnica
Estava, na terça feira à tarde, a dar os últimos toques num texto para um projeto da faculdade, algo na linha de “faça sua escolha”. Era sobre um advogado alcoólatra que brinca de roleta russa num cassino. Estava ruim de verdade, mas minha namorada tentou me convencer de que valia a pena publicar. Sendo assim, revia os últimos detalhes, quando recebi o recado.Estavam voltando das férias em Salvador. Imagino que deva ter sido um cachorro na estrada, ou um bêbado metido a Nelson Piquet que cruzou o caminho. O carro deveria estar bastante rápido, pra ter capotado desse jeito. O pai, a mãe e o irmão não tiveram maiores complicações. Ela estava mal. Quando a prima de Aline disse as três letrinhas, elas soaram em câmera lenta no meu cérebro, e ficaram coladas ao ouvido como uma coisa viscosa que escorre pela espinha e se instala naquele canto profundo da gente, aonde ficam as idéias fixas, os medos de infância e as obsessões maníacas. O meu coração, compassado, batia U.T.I – U.T.I - U.T.I ...
Aline é uma ex-namorada, alguém que foi especial pra mim. Se tornou uma grande amiga, e uma das primeiras pessoas que eu quis que conhecesse a mulher que escolhi pra casar, num show absurdamente trash na USP. Enquanto ouvia a notícia no telefone, lembrava de como ela é viva, de como gosta de dançar, de como ri alto, muito alto. Toma cerveja como homem, escreve cartas bonitas e não liga pra o que os outros estão pensando. De repente, a visão dela numa cadeira de rodas me fez perder a firmeza nas pernas, como se fosse eu quem estivesse com um coágulo no cérebro, bacia quebrada, tornozelos quebrados e três lesões na coluna.Quando desliguei o telefone, tomei um copo de água, me amaldiçoei por ter parado de carregar o frasco metálico do santo whisky. Acendi um cigarro e liguei pra casa da minha namorada. A voz dela me confortou, mas o coração continuava a ressoar as três letras, como se fosse um tambor de guerra anunciando que eu deveria correr ou cair.Fui passar a noite com minha ruiva, mas no caminho saltei do ônibus e entrei numa lan house, dessas que têm umas cabines de telefone. Disquei primeiro para o serviço de informações. Depois, para o hospital. O atendente não tinha muitas informações, mas ela já não estava entubada e estava fora da linha de perigo de morte. O atendente foi um anjo com sotaque baiano, que baixou um pouco a voz do meu Carlos Gardel particular. Em seguida, liguei para mais alguns conhecidos. Alguns se preocuparam muito, outros já estavam muito distantes daquele distante tempo em que éramos unidos, uma patota, como dizia minha avó. Decidi que ficaria chateado com os dissidentes mais tarde, quando tudo se acalmasse.
No dia seguinte, mais calmo (lençol quente à noite, café quente de manhã), resolvi mostrar a minha namorada o curta-metragem que a professora de português havia me enviado, sobre um garoto que sofre um acidente e fica paralisado à espera do resgate ou do fim, e fiquei com aquilo na cabeça. Pensei em como a vida pode se perder ou se transformar em um segundo. Numa hora você é uma jovem bonita, estudante de história, que canta numa banda de Heavy Metal, voltando de férias com sua família feliz e, de repente, Bam! O comercial de Doriana vira um pesadelo, e você está presa naquele segundo, um segundo eterno sem se levantar. E, aos que estão do lado de fora do teu segundo, presos num sem-tempo de sofrimento entre a esperança e o pessimismo, só resta olhar para deus - aquele mesmo que, em melhores épocas, você costuma negar -, que leve em conta juventude e risos altos.Em um segundo você se dissolve numa eternidade solitária. Ao fundo, só mesmo o som sádico do marcador cardíaco.
Aos que lerem este texto, peço-lhes que dispensem um segundo de suas habituais tarefas. Só por um segundo, desliguem o telefone e esqueçam das janelas de MSN. Só por um segundo, larguem seus cigarros, esqueçam a reunião de amanhã e rezem. Não lhes peço um Ave-maria, que eu mesmo já não me lembro mais como era. Dediquem apenas um segundo, um pensamento bom qualquer serve, pra que ela possa se levantar dessa cama e caminhar.
Para que eu possa ter, pelo menos, um segundo de paz.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Ramerrão*

Por Fábia Zuanetti
Acordou.
Leu o jornal. Na verdade, folheou.
Foi para o trabalho. Em cima da hora.
Almoçou. Não se lembra o quê.
Foi além do expediente.
Chegou na faculdade. Atrasado.
Estudou. Pouco se lembra o quê.
Voltou para casa.
Assistiu ao reality show do momento.
Tomou banho.
Jantou uma sobra de ontem.
Dormiu. A luz ficou acesa.
E cada momento da vida vai passando como se tivesse somente um segundo.
...
***

A vida hoje e o sabor que ela tem

Por Fábio Pereira

Trabalhando em uma redação de TV, percebi e anunciei que o jornalismo criou um novo tipo de texto. Curiosos, alguns amigos de trabalho vieram me perguntar sobre esse tal novo gênero. Expliquei a eles que o noticiário televisivo super veloz de hoje em dia tinha dado origem ao que chamei de “texto miojo”. E, ante os olhares questionadores, fui argumentando que a pressa imposta a nós, profissionais de TV, nos fazia redigir cada vez de maneira pior. O resultado, quase sempre, é um texto nada saboroso, com um tempero sem graça e que mais parece um grude. Igualzinho a esse macarrão instantâneo que a gente compra quando a fome é maior que a vontade de cozinhar. A turma riu. Achou que era piada. Eu digo: o caso é sério e grave. Eu detesto meus textos terminados às pressas e gosmentos.A informação nunca foi tão veloz como atualmente. Em meio a essa impressionante sociedade informatizada, dinâmica por conta de seus e-mails, blogs, conversadores instantâneos e sítios virtuais de relacionamentos, nunca foi tão fácil divulgar conteúdo de qualquer espécie. Nunca foi tão simples trocar idéias. As pessoas hoje, com um clic e quase nada a mais, constroem e destroem relações pessoais. Na era do Orkut, uma mensagem desrespeitosa ou mal interpretada na página de internet pode afastar amigos de longa data. Já para os bisbilhoteiros da vida alheia, nada melhor que ler todos os recadinhos os quais julgam ser denunciantes.Cada momento da vida tem seu sabor e, por isso, é bom quem seja vivido com certa intensidade. A ligeireza do processo comunicativo, além dos importantes e notórios avanços, tem feito diminuir a preocupação com o bom conteúdo. Querem informar com rapidez a todo custo sem atentar para a qualidade da informação. Essa pressa faz com que fiquemos cada vez mais imediatistas, apressadinhos, totalmente impacientes e imprevidentes. Deixamos de sentir o sabor de bons textos e, principalmente, da vida. A tecnologia deveria ser usada com mais sabedoria.Dia desses, um texto meu publicado na internet recebeu comentário [também instantâneo] de um leitor. Segundo este, meu texto estava longo demais para os padrões da internet, que suplica por textos mais breves. Concordei. Meu texto, criminosamente, ultrapassava a marca de seis ou sete parágrafos. Além disso, no mesmo comentário, li uma observação fiel da realidade: segundo o leitor, o usuário de internet não pode se deparar com textos longos porque, geralmente, está, a um só tempo, lendo, ouvindo música, zapeando a TV e, claro, conversando com outros internautas e acessando seus e-mails. Concordei também, claro, mas não sem uma gotícula de tristeza. Essa gente está fazendo tanto e, ao mesmo tempo, nada de útil, já que corre o grande risco de produzir algo que seja insuficientemente bom. E, assim, com tanta velocidade, com tamanho ritmo alucinado, em um segundo a vida acaba. Que desgosto...

Livre arbítrio (Visita de domingo)

Por Marcelo Fabri

Prestes a tomar alguma decisão me lembro do clichê, muito utilizado por publicidade e desenhos animados, do anjo e do diabo pendurados nos ombros, num debate de quais escolhas são corretas. Além disso, me escondo em alguma parte da casa e começo a falar sozinho. Na verdade falo com as criaturinhas. No ombro esquerdo, o diabinho sugere as coisas subversivas e do prazer sem limites e o anjinho na direita, tudo aquilo que é sensato e de acordo com os bons costumes. Entro na banheira cheia e fico sentado com os ombros fora da água. Quando uma das criaturinhas se invoca e usa artifícios muito baixos na sua argumentação eu deito mais na banheira e afogo o lado que está me irritando.
Mas ali no banco, em frente ao gerente da minha conta, eu não tinha nenhum lugar para ficar sozinho e falar alto comigo mesmo. As criaturinhas ficariam envergonhadas de aparecer em um local público. Disse ao engravatado que pensaria e traria uma resposta. O seu olhar foi impiedoso, pior que o de uma mãe irritada, para soltar uma frase indigesta: “você foi demitido e cada dia que protela para investir seu dinheiro, ele vale menos”.
Assim como o personagem de Nicholas Cage, no filme “Despedida em Las Vegas”, resolve beber até morrer depois de ser demitido, eu decidi gastar toda a minha indenização e os meus direitos trabalhistas até minguá-los e não trabalhar. O ombro esquerdo levou a partida. O diabinho não usou um argumento tão sofisticado, mas me fez refletir que a criatividade é o que move minha profissão. Portanto, resolvi me entregar aos prazeres. Sentir o cheiro do bairro em horários desconhecidos até então, deixar a brisa da madrugada bater no meu rosto, ver os dias amanhecerem, chegar tarde nos bares, filosofar no meio do dia com algum amigo e não ter hora para me entorpecer. Afoguei o gerente de banco pelo ombro direito.
Dois meses como “bon vivant” e não tive nenhuma crise de consciência. Nem lembrei que pudesse ser uma escolha atrevida, egoísta e que pudesse ser recriminada. Mas quando vi Renatinho de longe, parado numa esquina perto de casa, o germe da dúvida colocou a cabeça para fora.
Ele era dono de um típico boteco do centro, na rua Nestor Pestana. Azulejos coloridos, balcão de fórmica, cheio de bebuns e prostitutas, freqüentado por atores, jornalistas, músicos, atrizes e alcoólatras de escritórios da redondeza. Minha cara. Depois que o pai morreu, o bar durou pouco na mão dele e do irmão. Não o vejo há dez anos, um pouco menos. Uma ex-namorada nos afastou. Tânia chegava mais cedo que eu no bar e ele aproveitava o meu atraso para ser simpático e gentil. Depois de um tempo, para ser abusado e lascivo o suficiente e levá-la ao fundo do bar. Sabe-se lá quanto tempo e quantas escapadas foram necessárias até decidirem ficar juntos.
Ali, parado na esquina, os seus amigos o chamavam de Renato, sem o diminutivo. Dez da manhã. Eu chapado e ele vestido para o futebol. Mas por que perto da minha casa? São Paulo é tão grande. O sol fazia cócegas no meu pensamento. Não conseguiria me controlar e ia rir sem parar quando estivesse na frente dele. Ia ser desastroso. Ainda escutava as músicas da festa que acabara de sair. Não queria um papo nostálgico para afastá-las, aliás, eu não estava em condições de conversar.
Tentando atravessar a rua, quase fui atropelado. O barulho da freada chamou atenção dele e de todos, naturalmente. Não me abati pelo ocorrido e, como previsto, comecei a rir enquanto ele falava alto um monte de coisa de quem mata as saudades. Eu não ouvi nada. Parecia que eu ainda estava na festa com a música alta e seus lábios se mexiam produzindo um som bem menor. Nem sei como cheguei em casa depois desse rápido encontro.
À noite, acordei com o seu telefonema. Reclamou bem humorado que eu ainda estava em casa. Eu havia combinado de passar na casa deles hoje mesmo. Sim, eles ainda formavam um casal. Segundo ele, prometi até levar um sorvete e só não decidi o sabor porque não parava de rir.
- Você vem ou não vem? – perguntou.
Por um instante achei que precisaria papear sozinho com meus ombros. A primeira centelha de insegurança desde o desprezo ao gerente de banco. Era natural esse sentimento. Eu encontraria Tânia que me trocou por alguém que sempre escolheu por trabalhar. O que eu diria a eles quando me perguntassem sobre trabalho? “Veja bem. Um diabinho me soprou na banheira, pelo ouvido esquerdo, que devo aproveitar o máximo que a vida e o dinheiro têm a oferecer”. Digo pelo menos quando pretendo voltar a trabalhar? Que piada! Que se danem. Engulam com ou sem água minha resposta.
- Em quarenta e cinco minutos chego à sua casa. - respondi com firmeza.
Olhando aquele casal com seus três filhos, fiquei orgulhoso das minhas decisões. Toda insegurança foi embora quando entrei naquela casa. Tânia desfigurada pelo matrimônio, nem trabalhava mais. Só cuidava da casa e dos filhos. Renatinho só fazia alguma caridade a ela quando resolvia cozinhar macarrão com molho de caixinha ou a levava em algum shopping suburbano. As crianças davam tanto trabalho, que quase não conseguíamos conversar. O que era bom, de certa forma. Não queria profundidade.
Eu tive a impressão que o passado ficou tão distante para eles que talvez tenham esquecido que era comigo que Tânia namorava. Mas ela não deve ter esquecido que sua escolha à época era casar e ter filhos. A escolha de Renatinho nunca me interessou. Com as crianças chorando me despedi aliviado. “Até à próxima!”, menti.
Um táxi me deixou na porta da próxima farra, na Praça Roosevelt, muito perto da Rua Nestor Pestana.

Um segundo

Por Vinicius Peixoto


Ana Clara tinha cinco anos. Precoce, conseguia ter uma compreensão incomum das coisas que aconteciam ao seu redor. Era linda e tinha cabelos cacheados, amarelos como o sol. Aprendeu a ler aos três anos. E aos três e meio conseguia ler um livro infantil sozinha antes de dormir. Sua história preferida era a da Chapeuzinho Vermelho. Seus olhos eram azuis, azuizinhos como uma piscina. Duas pedras de água marinha que cintilavam contra a luz. Sempre que lia alguma história, fazia, ali mesmo, na cama, uma análise crítica para a mãe. Assustava às vezes, principalmente quando levantava questões ligadas ao âmago do ser. Coisas que nem sua avó conseguia pensar. Tinha a pele alva e seu corpo esguio parecia que ia se quebrar a cada passo que dava. Gostava de roupas simples, de criança, e sua cor preferida era o vermelho.
Se quando morremos a vida inteira passa na nossa cabeça em um único instante, para Ana Clara esse tempo parecia eterno. Não poderia se arrepender das coisas ruins que fez. Afinal, era muito jovem para ter qualquer maldade no coração. Não poderia lamentar as oportunidades perdidas. Muito menos justificar seus erros.
De que uma menina de cinco anos de idade lembraria em seu último suspiro, então? A Barbie fada que ganhara na semana passada, talvez? Ou quando escreveu o próprio nome no papel pela primeira vez. E a visita ao zoológico? Aquele leão realmente dava a impressão de que a engoliria a cada bocejar!
Escolheu, em sua inocência, em sua ingenuidade sem igual, pensar na bailarina que rodopiava ao som do porta-jóias da mãe. Quando crescesse, queria ser bailarina. Estava decidida, e não pensava em ser outra coisa se não bailarina. Daquelas que rodopiam ao som de porta-jóias. O frio chegava e fazia tremer todos os ossinhos daquele corpo alvo e delicado. O som do porta-jóias titilava em sua mente. E a imagem da bailarina rodopiando graciosamente, como num plié eterno. E o frio, e a música, e os ossinhos, que poderiam se quebrar a cada passo. A boca do leão era tão grande que a engoliria inteira em uma só mordida. Mas e se o leão fosse também bailarino? E se também dançasse graciosamente, como uma bailarina que roda pliés eternos em um porta-jóias?
Entre tantos pliés de bailarinas e leões dançarinos de bocarras imensas, passou-se finalmente o último segundo. E como o som de qualquer porta-jóias não dura para sempre, a canção foi cessando, foi aumentando o frio que fazia tremer todos os ossinhos daquele corpo de porcelana que poderia quebrar a cada passo, foi embaçando a vista do poste de luz, e foram se misturando lágrimas e gotas da chuva fina que caía.
Ana Clara. Cinco anos de idade. Fatalmente precoce. Ingênua e inocente como jamais se vira. Questionava as complexidades do ser humano, mas, durante seus últimos momentos de vida, só conseguia pensar no som do porta-jóias, na bailarina de pliés eternos e no leão de bocarra imensa. A história que mais gostava era a da Chapeuzinho Vermelho. E era vermelha também sua cor predileta. Alva era sua pele, azuis seus olhos brilhantes, amarelo seu cabelo e negra a noite chuvosa em que tudo aconteceu.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A escolha do amor

Por Fernando Thadeu Fonseca dos Santos

Tudo na vida segue um caminho um tanto quanto incerto. Na medida da caminhada, deparamos com várias situações que nos obrigam a tomar decisões diferentes.Cada um tem sua forma de escolher o que mais lhe agrada, isso é muito pessoal. Mas a vida nos prega muitas peças. Nem sempre escolhemos as coisas certas, o que acaba nos colocando em ruas sem saída, onde o caminho de volta geralmente tende a ser penoso demais.Escolher a profissão para jovens que se vêem atolados em um número enorme de possíbilidades é sempre desgastante. Assim também é no amor, na escolha da pessoa com quem queremos ter uma vida a dois, nem sempre é como imaginamos. O que parece nem sempre é realmente. Ou tudo se transforma, ou somos enganados pela primeira impressão.Essa decisão, quando descoberta que errônea fora, começamos então o caminho de volta. Caminho este que não é necessariamente instantâneo, pois o sentimento de dor e decepção que nos abraça nesta descoberta, nos coloca em um poço de vazio e divisão das reais possibilidades que podemos alcançar.Nos damos tanto para conseguir tais desejos de sentimentos, deixamos de fazer e de ser, para chegar ao diamante maior fazendo a escolha certa, que nessa hora, deixamos de acreditar que tudo pode dar errado, sem se importar com o que podemos sofrer. Quem não tem essa entrega geralmente é quem pensa no posterior. Nas dores do momento final. Acabam pensando mais, para uma resolução correta a sua maneira. O medo de passar pela dor da decepção os aflige de tomar decisões erradas. Dessa forma, se entregam e amam menos. O amor é sinônimo de entrega. E sem amar não fazemos a escolha certa.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Segundo tema (Ainda uma experiência...)

Para o segundo tema, pensei muitos assuntos, mas preferi deixá-los mais livres para definir o que fazer. Pensei em algo como " A vida em um segundo" e "A vida é feita de escolhas". Por que isso ? Pelos dois curtas que indico para vocês:

- o primeiro tem como título Faça sua escolha, narração de Pereio e texto de Fernando Bonassi. Aparentemente, pode parecer apenas tiração de sarro, mas prestem atenção no início, principalmente.Veja o
curta;
- o segundo, O lobinho não mente, é do ano passado e tem um ar tragicômico.Veja o curta.


Os temas ainda permitem a diversidade de gêneros, seria interessante ( é só uma dica) se optassem por um gênero diferente do primeiro. Espero que gostem !



Em tempo, a partir de agora, nosso colega Plínio Zúnica, do blog Crimidéia, passa a integrar o grupo

Freegans

Por Fábio Silva
Há alguns anos, num momento oportuno, em que eu cultivava barba e "idéias revolucionárias", conheci os vegans, esses que, além de não consumirem nenhum produto de origem animal, desprezam tudo o que seja testado nos bichos. Os vegans, que, embora, o nome se pareça com aqueles dados a criaturas más dos jogos de RPG, pregavam uma ideologia regada de paz, amor e muita alface.
Sempre apoiados em histórias com animais no papel principal, um deles me contou a de um cavalo, um andaluz, que chorou ao ouvir seu vizinho de baia fazer sons estranhos enquanto virava bife. Depois de ouvir a essa comovente história, decidi que a partir de então não comeria nem carne de pangaré, entendi que eu seria um vegan (ou um "natureba", como seria chamado por aí)... até chegar o dia do churrasco na casa da minha tia.
Após anos de muito cupim, coxa, fraldinha, picanha, costela..., soube por uns e outros que aqueles vegans tinham ganhado novo nome: freegans, e que, agora, além da ideologia, procuravam por meios alternativos de sobrevivência, na tentativa de burlar o sistema capitalista, até que se vissem livres dele. Frees, entendeu?
Quando a fome apertava, eles surgiam nos finais das feiras de rua atrás de tomates (pouco amassados), bananas fora do cacho...; nos lixos, reviravam aqui e ali, e lá estava uma peça de roupa ou algum utensílio doméstico. Dizem que uma deles até moto chegou a trocar pelo ecológico skate; já um outro, desfez o nó na gravata italiana e foi vender livros e camisetas na Alameda das Flores, em São Paulo. Sim, os freegans, (embora irritados com este rótulo que deram a eles) iam muito bem, estavam felizes e de consciência limpa, virando-se como podiam, à margem da economia.
Em toda comunidade, por mais libertária que seja, figuram os fanáticos. Esses coitados, que de tanto se apegarem a discursos subjetivos, acabam por se "enforcar na mesma corda da liberdade" que pregam. Acontece que, lá pelas bandas do ABC, onde alguns freegans dividem um imóvel desabitado, soube que chegou um rapaz novo para ajudar com a feira. Aproveitando-se das linhas tortas da cartilha freegan, o esperto rapaz burlou este "sistema" para fugir da responsabilidade. Disse que abandonou a namorada (ainda de barriga) depois de saber que na carne dela havia produto industrializado. "Silicone, vê se pode!"

Promessa de Ano Novo

Por Fábia Zuanetti

Ela estava em seu quarto, sentada na beira da cama, olhando pela janela. Lembrava das comemorações de final de ano. Ceia de Natal em casa, almoço na casa dos avós, muitas risadas durante o réveillon… Listava também, em sua mente, metas para 2008. Em outro momento, passaria tudo para o papel, juntamente com o planejamento, o step by step para realizar cada objetivo. “A vida passa muito rápido”, pensou, “está mais do que na hora de cumprir minhas promessas e realizar os meus desejos”
Sorriu, satisfeita, como se possuísse poderes imensuráveis para realizar todo o “impossível”. Imaginou-se então, naquele mesmo local, apreciando o formato das mesmas nuvens, no início de 2009. “Estarei eu elaborando uma nova lista? Muito provável que sim…”
Começou a analisar, então, o dia-a-dia das pessoas. Notou que não só nas passagens de anos se fazem promessas e listas e mais listas… mas também todos os dias. “E quando eu realizar tudo o que está em minha lista, qual será o passo seguinte? Elaborar uma nova lista…”. Respondeu a si mesma.
Neste momento, ouviu cantos de passarinhos e começou a imaginar como seria a vida dessas pequenas criaturas. Sempre alegres e talentosas, cantam todos os dias, a qualquer horário. Felizes, não porque realizam, conquistam… mas simplesmente porque vivem.
Ficou imaginando, então, quanto tempo de sua vida concentrou suas energias apenas em metas, objetivos. O seu conceito de felicidade estava sempre no futuro, sempre na maçã no alto da árvore que desejava tanto alcançar. Imaginava que só estaria feliz quando estivesse com essa maçã nas mãos. Porém, o ano novo transformara algo dentro dela. Notou como sentiu-se plena ao estar na companhia de seus familiares, ao ler seu livro preferido… Não se sentia satisfeita apenas ao terminar a leitura. Sentia-se bem durante todo o processo de leitura do livro.
“Talvez o ser humano foque no item errado”, pensou consigo mesma. Chegara à conclusão que, melhor que usufruir de tudo aquilo que se conquistou, era o processo de conquista. O ato de expandir os horizontes, dar passos mais largos, voar mais alto, sentir que se está ficando mais forte… “Afinal, não é isso que o ser humano leva para outras vidas?”, pensou, “A experiência, o aprendizado, a maturidade…” Decidiu, então, que a maior e mais importante das suas promessas seria a de estar atenta a cada milésimo de segundo de sua vida, na confiança de que tudo daria certo, sem deixar de sentir a alegria de cada momento.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Concorrência desleal

Por Marco Aurélio Gois dos Santos



Mas não me faltava mais nada para terminar de foder com porra da minha vida! Vejam só: sou um mendigo, moro na rua, vivo cheio de cachaça na idéia, ando todo mijado e cagado, sou apedrejado por moleques e corro a toda hora o risco de morrer queimado por algum nazista pouca coisa mais revoltado. É pouca desgraça? Pois então, agora piorou. Já conto.
Foi na semana passada, ou retrasada, sei lá. Acordei, joguei o papelão pro lado e estiquei o braço para pega a garrafa de pinga — café-da-manhã é uma refeição sagrada. Um calor filho da puta, e eu andando com um pé descalço no asfalto quente. Mas era preciso: dia de feira, de abastecer o bucho, ingerir vitaminas. Fui, então, até a feira para pegar minha xepa semanal. O pessoal já estava desmontando as barracas, e não tinha mais ninguém comprando nada. Faz parte do meu acordo com os feirantes: eles guardam alguma coisinha para mim que, em troca, não apareço durante o horário de movimento, para não espantar a freguesia. Fui chegando, encontrei o Zé Banana, que vende tomates.
— Aê, Zé véio! Alguma coisa aí pra mim?
— Xi, rapaz, hoje não. Aquele pessoal ali já pegou tudo.
Olhei para onde ele apontava. Um grupo de sete ou oito garotas e rapazes, todos com cortes de cabelo esquisitos e brincos no nariz, carregava sacolas de plástico cheias de verduras e legumes. O Banana me explicou: tinham percorrido as barracas pedindo sobras e, não contentes com isso, agora faziam a xepa na ponta da feira. “São
frígans“, me explicou o Banana. São contra o capitalismo, o sistema, o caralho a quatro. Por conta disso, andam por aí catando coisas nas feiras, na rua, no lixo.
— Peraí, Banana. Cê tá me dizendo que esses viadinhos fazem a xepa porque querem?
— É isso aí.
Filhos de uma quenga… Eu aqui todo fodido, comendo o pão que o diabo amassou com o cu, e os cornos catando comida no lixo porque acham bonito. Moram numa casa aqui perto, com caminhas confortáveis, luz elétrica, água encanada. Que beleza! Queria ver é eles morarem na rua, os putos!
Fiquei olhando o movimento do grupo. Eles riam, conversavam, assoviavam música ruim. Depois de um tempo, uma das meninas notou minha presença. Abriu um sorrisão, veio andando na minha direção e me estendeu uma sacola cheia de verduras.
— Pode pegar, moço. Não faça cerimônia.
Olhei aquela sacola estufada, cheia de comida, e a barriga roncou. Mas o orgulho foi mais forte:
— ENFIA NO CU, VADIA!
E saí andando. É uma questão de princípio: não aceito esmola da concorrência.

Oásis

Por Marco Aurélio Gois dos Santos

No alto da colina, o prédio mais curioso lembra uma mesa: um grande bloco de concreto repousando sobre quatro colunas, com um imenso vão livre embaixo. Para mim, é a mostra mais assombrosa do engenho e sabedoria dos antigos. Lá dentro, grandes espaços vazios e muitos quadros nas paredes. Representam pessoas, paisagens, animais, objetos. Alguns não representam coisa alguma: são borrões de tinta, formas geométricas. Não gosto desses últimos; me perturbam um pouco. Os outros são bonitos. Passo minhas tardes aqui dentro, observando os quadros. Leio as assinaturas, sei o nome de todos os pintores. Gosto de um tal Monet. Suas paisagens são meio esfumaçadas e parecem, de alguma forma, mais leves do que as outras. É como olhar a avenida deserta lá fora sob o sol do meio-dia, a paisagem ondulante, deformada pela onda de calor que sobe do asfalto rachado.
Mas é claro que não posso falar sobre isso com os outros. Somos
freegans, e devemos ter orgulho disso. Os quadros são fruto da velha sociedade capitalista, cruel e desalmada. A sociedade dos antigos, nos ensinam os mestres, foi construída com base na opressão e na exploração do homem pelo homem. As pessoas trabalhavam para consumir de forma descontrolada, adquirindo desejos criados e impostos pelo sistema dominante. Havia o conceito de dinheiro, pedaços de papel e metal que representavam valores arbitrários. Pessoas matavam e morriam pelo dinheiro, famílias se desintegravam, nações entravam em colapso, populações eram dizimadas. Havia infelicidade, insegurança, depressão.
Então veio a Grande Revolução Freegan. Os primeiros freegans eram ridicularizados por suas idéias, avançadas demais para aquele tempo. Viver fora do sistema parecia loucura. Mas eles eram fortes, confiantes, e sua convicção influenciava cada vez mais pessoas. O grupo cresceu, cresceu, e acabou tomando o poder em várias partes do mundo. A antiga cidade de São Paulo, onde vivemos hoje, foi declarada Nação Freegan Independente, e suas fronteiras com o resto do país, ainda chafurdando no capitalismo, foram fechadas. O nome antigo, que guardava relação com a antiga religião (opressora e aliada ao capitalismo) foi trocado por Oásis. Isso foi há muitos anos, ninguém sabe ao certo quantos. Os mestres dizem que Oásis é a pérola freegan do mundo, que devemos nos orgulhar de nosso país livre das amarras capitalistas. Eu sei que devia pensar como os outros, viver feliz, enfim, ser um verdadeiro freegan. Só que não consigo.
Quanto mais eu ando pela velha cidade e vejo as obras dos antigos, mais questiono o modo de vida freegan. As ruínas da avenida lá fora, por exemplo, devem ter sido prédios belíssimos, espantosos. As carcaças enferrujadas um dia foram automóveis, cortando velozmente as ruas da cidade. Imagino a agitação, as luzes, as cores, o movimento. Sim, somos mais saudáveis e mais conscientes.
Mas valerá a pena? O que plantamos já não basta para nosso próprio sustento. Alguns dissidentes abandonaram o vegetarianismo, e saem à noite para caçar cães, capivaras, gatos, ratazanas do tamanho de gatos. De tempos em tempos, helicópteros de entidades internacionais sobrevoam a cidade, lançando caixas com mantimentos que são disputadas a tapa. Os mestres, que tanto falam em orgulho freegan, nada dizem sobre a ajuda internacional. Para mim, é uma aceitação tácita de esmolas. Somos os parasitas do mundo.

Esse tal mundo free

Por Fábio Pereira

O sujeito não entendeu nada quando chegou do trabalho e se assentou à mesa do jantar. Nela, havia uma pessoa a mais: um garoto de roupas bem simples, mas limpas, chamado Gaio. Era o novo namorado da filha adolescente e fora conhecer os sogros. Até aí, tudo normal.
Chegadas as panelas transbordantes de comida, algo mais estranho ainda. O cardápio era sopa. Sopa e água. Nada de cerveja nem refrigerante. Reclamou à esposa. Esta explicou tão diretamente que o sujeito quis morrer: aquele era um jantar freegan, típico de uma tribo de mesmo nome que adora produtos ditos “naturebas” e não aceita nada que seja industrializado.
Ele já tinha visto algo sobre isso na TV. A esposa continuou explicando e disse que aquela mesa era servida em respeito à filhinha e ao Gaio, ambos novos convertidos à ideologia freegan. Explicou também o motivo daquele par de bicicletas no quintal. “Sei, sei... essa gente prefere não poluir”, rosnou ele. E, enquanto sorvia o caldo quente, foi ruminando um inconformismo sem fim.
A certa altura, aquele pai resolveu quebrar o silêncio. Perguntou ao Caio (“É Gaio, papai! Gaio!”)... perguntou ao Gaio o que ele faria para sobreviver e sustentar uma família. O menino, de corpo franzino, olhos bem miúdos e voz finíssima, garantiu que sustento não era problema e foi, em seguida, relatando os números do desperdício em uma capital como São Paulo. Segundo ele, alimento bom para o consumo é facilmente achado em meio ao lixo da grande metrópole. “Lixo!”, gritou o pai surpreendido. E lá se foi uma involuntária cusparada de sopa pela mesa toda.
Bem de noite, no reduto do quarto, a esposa tentava acalmar o infeliz. Dizia que aqueles meninos freegans pregavam uma ideologia bonita de se ver e ouvir. Eram só paz, combatiam o consumo exagerado, não queriam poluir e, além disso, gostavam de viver em comunidade, uns ajudando aos outros. E lembrou ao marido contrariado que aquela era a sociedade com a qual a geração deles, ainda jovem, tinha sonhado. O sujeito, enfim, se tranqüilizou um pouco. Para ele, ideal aquele menino não era, mas devia ser boa pessoa. Bem no fundo. E a esposa contente prometeu pagar a compreensão com uma reconfortante massagem nas costas. Daquele jeito que ele adorava.
O garotinho freegan, no fundo, era gente boa mesmo. Ia contra o sistema capitalista sem, no entanto, se revestir de uma belicosidade terrível. O que aquele casal de pais, agora sogros de um revolucionário, nem desconfiava é que o vizinho Eduardo, garoto com quem antigamente sonhava casar a sua filhinha amada, escolheu uma outra revolução para realizar. Edu conheceu uns garotos na faculdade e se tornou um anarquista extremista de elite. O que isso quer dizer? Sei lá... O fato é que o seu grupo pretende, daqui a dois dias, promover um atentado contra um líder político. E, com certeza, nenhum integrante estará montado em bicicleta. Revoluções as mais diversas são fáceis de se tramar em uma democracia.

O sujeito não entendeu nada quando chegou do trabalho e se assentou à mesa do jantar. Nela, havia uma pessoa a mais: um garoto de roupas bem simples, mas limpas, chamado Gaio. Era o novo namorado da filha adolescente e fora conhecer os sogros. Até aí, tudo normal.
Chegadas as panelas transbordantes de comida, algo mais estranho ainda. O cardápio era sopa. Sopa e água. Nada de cerveja nem refrigerante. Reclamou à esposa. Esta explicou tão diretamente que o sujeito quis morrer: aquele era um jantar freegan, típico de uma tribo de mesmo nome que adora produtos ditos “naturebas” e não aceita nada que seja industrializado.
Ele já tinha visto algo sobre isso na TV. A esposa continuou explicando e disse que aquela mesa era servida em respeito à filhinha e ao Gaio, ambos novos convertidos à ideologia freegan. Explicou também o motivo daquele par de bicicletas no quintal. “Sei, sei... essa gente prefere não poluir”, rosnou ele. E, enquanto sorvia o caldo quente, foi ruminando um inconformismo sem fim.
A certa altura, aquele pai resolveu quebrar o silêncio. Perguntou ao Caio (“É Gaio, papai! Gaio!”)... perguntou ao Gaio o que ele faria para sobreviver e sustentar uma família. O menino, de corpo franzino, olhos bem miúdos e voz finíssima, garantiu que sustento não era problema e foi, em seguida, relatando os números do desperdício em uma capital como São Paulo. Segundo ele, alimento bom para o consumo é facilmente achado em meio ao lixo da grande metrópole. “Lixo!”, gritou o pai surpreendido. E lá se foi uma involuntária cusparada de sopa pela mesa toda.
Bem de noite, no reduto do quarto, a esposa tentava acalmar o infeliz. Dizia que aqueles meninos freegans pregavam uma ideologia bonita de se ver e ouvir. Eram só paz, combatiam o consumo exagerado, não queriam poluir e, além disso, gostavam de viver em comunidade, uns ajudando aos outros. E lembrou ao marido contrariado que aquela era a sociedade com a qual a geração deles, ainda jovem, tinha sonhado. O sujeito, enfim, se tranqüilizou um pouco. Para ele, ideal aquele menino não era, mas devia ser boa pessoa. Bem no fundo. E a esposa contente prometeu pagar a compreensão com uma reconfortante massagem nas costas. Daquele jeito que ele adorava.
O garotinho freegan, no fundo, era gente boa mesmo. Ia contra o sistema capitalista sem, no entanto, se revestir de uma belicosidade terrível. O que aquele casal de pais, agora sogros de um revolucionário, nem desconfiava é que o vizinho Eduardo, garoto com quem antigamente sonhava casar a sua filhinha amada, escolheu uma outra revolução para realizar. Edu conheceu uns garotos na faculdade e se tornou um anarquista extremista de elite. O que isso quer dizer? Sei lá... O fato é que o seu grupo pretende, daqui a dois dias, promover um atentado contra um líder político. E, com certeza, nenhum integrante estará montado em bicicleta. Revoluções as mais diversas são fáceis de se tramar em uma democracia.

Quem define os sonhos (Briga pelo telefone no domingo à tarde)

Por Marcelo Fabri


Peguei um ônibus e deixei São Paulo correndo. Pensei até em fazer um sorteio dentro da rodoviária e a sorte me trazer alguma cidade como destino. Mas não era a hora de arriscar tanto. Precisava mesmo descansar e sumir com todos os sintomas que a cidade deixou grudado. Tudo me incomodava, até barulho de chinelo arrastando pelo chão. A intenção era trocar o apito de alarmes de automóveis por pássaros e ondas batendo nas pedras. Largar as coisas assim, de uma hora para a outra, não é difícil para mim. Confio no meu tempo livre e não nas horas trabalhadas; não acredito no lucro.A parada final foi uma vila de pescadores perto de Parati. Nada de televisão, telefone e sapatos. Uma casinha de sapé me serviu de hospedagem. Fogão a lenha no lugar de frigobar, uma janela com vista para o mar no lugar de TV a cabo e um galo para me acordar no lugar do celular. Esses prazeres são indispensáveis. Eu não considero que seja um paraíso, algo inalcançável ou privilégio de poucos. Eu acredito mesmo no ócio criativo como ideal de vida intercalado com o trabalho sem idolatria, como diria o pensador italiano Domenico de Masi.Num domingo, fiz uma pequena visita à Parati. Entrei num restaurante e, tomando um café expresso, assistia involuntariamente um telejornal. Apesar de ter acionado um filtro auditivo para não escutar os repórteres e apresentadores, reconheci André na tela. Ele não deu entrevistas, mas aparecia em alguns planos de câmera, sempre ao fundo. “Eles adotaram o estilo de vida ‘Freegan’ e negam o trabalho e o capitalismo” dizia o repórter. “Belos ideais” pensei sorrindo. A câmera mostrava jovens recolhendo restos de uma feira livre no ABC paulista. A narração do repórter era cheia de preconceito e ironia, sempre sinalizando que os jovens não queriam trabalhar e muito menos pagar por serviços como aluguel, transporte e outros serviços públicos. Mesmo quando alguém do grupo relatava as suas propostas, “apoiamos a generosidade, o interesse social, a liberdade, e a ajuda mútua”, o melhor comentário do repórter era: “O sonho desses jovens esbarra na realidade. Um ideal romântico como esse é possível ser concretizado?”. A reportagem também queria denotar que os jovens tiravam a oportunidade de pessoas com baixa renda de aproveitar o famoso fim de feira.Fiquei muito contente pela escolha de André. Ele era um recente namorado da minha filha, Lorena. Desde que eu o conheço já era “vegan”, ou seja, não consome nenhum tipo de produto animal, nem ovos, nem leite e roupas de couro e similares. Ela é ovolactovegetariana há alguns anos e começou a introduzir receitas vegans na sua dieta.Um orelhão na frente do restaurante me incentivou a ligar para Lorena. “Lorena, vi o André na TV!” gritei. Ela bufou forte e quase me xingou:- Você viaja para fugir das coisas e vê TV? Eu não quero falar do André. Ele não sabe o que quer. Eu não como nada que tenha sacrifício animal, mas não sei se quero mudar o mundo agora.Percebi que meu apreço pelo ideal “freegan” não era unanimidade naquela família. Minhas leituras na juventude, eventos na universidade, filosofia barata em botecos, juras de amor, entre outras coisas, eram um ensaio para chegar nesse estágio de liberdade. Negar o consumo desenfreado, adotar sistemas de autogestão inspirados nos anarquistas, se alimentar sem precisar de crueldade e do sangue dos animais, era tudo o que eu queria e não tive “colhões“ para encarar. Fugir de uma cidade para a outra e curtir era uma coisa, mas mudar radicalmente de posição era preciso coragem e determinação. E o jovem André tinha. Lorena não reconheceu isso e muito menos apreciou. Era uma espécie de egoísmo que tomava conta dela aos 19 anos de idade? O que essa sociedade embutiu na sua cabeça que eu não consegui imunizar? Telefonei novamente e brigamos mais uma vezEra uma situação confusa. Eu, o pai, incentivando que ela viva num ideal ético que a maioria dos pais quer distância; eu, o pai, frustrado com as posições caretas e capitalistas da filha; eu, o pai, forçando a barra pelo telefone sem estar na pele dela; eu, o pai, admitindo a própria covardia de não aplicar as utopias das conversas de boteco.André, com seus 20 anos, não tem a verdade superior. Nem eu. Talvez tenhamos um senso humanista exagerado e uma noção que “Os novos baianos” já cantaram: “o mundo é oval e a vida é uma” na música “Caia na estrada e perigas ver”. A pressa em ver o mundo mudar fez André útil e prático. Fará a sua parte mostrando essa “anarquia vegan”. Quanto a mim, essa pressa não me encorajou o suficiente. Só sirvo de alto falante, ou papagaio de pirata.Na volta desse ensaio de rebeldia aqui perto da areia e do mar pedirei desculpa à Lorena. Quem sou eu para cobrar que ela seja aquilo que não consegui ser? Quero conhecer os sonhos de Lorena e que sejam com ou sem André.De volta à vila, aproveito para pedir uma canção ao hippie que está ao meu lado com um violão. É do Caetano Veloso, mas ficou conhecida na voz de Gal Costa, chamada “Divino maravilhoso”. Digo para ele que me ajudará a refletir. Ele toca com algumas dificuldades na letra, mas eu e sua amiga o ajudamos: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte(...)tudo é perigoso, tudo é divino e maravilhoso”.

A promessa

Por Vinicius Peixoto


Cheguei em casa meio tonto, com um gosto de fel na boca. Uma mistura de cerveja, cidra barata e fumaça de fogos de artifício. Aquilo que causou náuseas; o estômago estava embrulhando. Limpei os pés no tapete - como de costume - e entrei. Tudo era o mesmo.
A casa continuava intacta. A mesma do ano passado. Também, pudera! Fazia apenas algumas horas que tinha saído para curtir a noite de réveillon. Por outro lado era um novo ano. Algo ali precisava mudar. Não na casa em si, na disposição dos móveis ou na cor das paredes. Olhando em volta, sentia um quê de bagunça e era muito difícil discernir se a faxina precisava acontecer dentro ou fora do meu ser.
Não passava de duas da manhã. Alguns fogos retardatários insistiam em estourar nos céus, com persistência e intervalo de tempo irritantes. Enquanto mudava de roupa, notei o quadro no centro de uma das paredes da sala. Nunca o abstracionismo fez tanto sentido para mim. Consegui ver toda a minha infame existência naquele conglomerado de amarelos, vermelhos e cáquis. Cada curva, cada mudança de tom me fez relembrar algo na minha vida.
Cheguei mais perto. O verde me fez lembrar a infância, quando corria livre pelas pastagens da fazenda do tio Jerônimo, no interior. Passava todas as minhas férias de verão por lá. Perseguia sagazmente filhotes de ovelha e de quando em vez era também perseguido por cabras furiosas. Sorria muito, chorava manhoso por um agrado ou presente e sempre, sempre estava com algum machucado ou arranhão. Devo ter sido o moleque mais espoleta da terra.
Mas e esse sentimento. Continua. O que será que está faltando?
O vermelho, em uma curva, sobrepondo maioral as outras cores, me lembrou do primeiro encontro com Luiza. Eu tinha uns quinze anos. Ela, uns treze. Foi amor à primeira vista. Naquele momento, em que ela tropeçou no meio da sorveteria e carimbou minha cara com sorvete sabor morango, eu tive a certeza de que ela ia ser minha mulher para o resto da vida. Tomamos muitos outros sorvetes naquelas férias e nas outras que a sucederam.
Se pelo menos pudesse saber o significado desse vazio dentro de mim.
O primeiro beijo que dei em Luiza aconteceu em um dia ensolarado, debaixo de uma figueira marrom como a reta que cortava abruptamente o quadro na diagonal. Lembro como se tivesse acabado de acontecer. Ela corou e se riu das cócegas que os pelos que começavam a nascer na minha cara faziam. Tinha um sorriso lindo. Criava covinhas em suas bochechas rosadas. Ela ria meio de lado, como quem esconde um segredo. Ria como anjo, sua mãe costumava dizer.
Serão saudades de Luiza? Então por que não aconteceu nos outros anos?
Crescemos, nos formamos e casamos. O vestido de Luiza era longo e branco, como a pincelada geniosa do pintor no canto do quadro. Olhei pro lado e vi aquele par de chinelos azuis. Eles estavam ali nos últimos anos sempre parados, como esperando ela chegar, tirar os sapatos do lado de fora da casa e gritar comigo antes de calçá-los, por conta de meu péssimo modo de pisar com o pé sujo no chão limpo.
Os chinelos eram azuis como a água que levou minha mulher embora dessa vida. E era azul também o tom que mais me chamou a atenção naquele quadro. Me lembro exatamente do dia em que cheguei em casa e todos estavam a minha espera, entreolhavam-se como se sorteassem em uma roleta maldita quem iria me dar a notícia. Meu pai me abraçou e chorou aos soluços. Não entendi nada. Por que aquele clima fúnebre? Onde estava Luiza? Não souberam me explicar muito bem. Um erro de cálculo, a água da piscina, uma convulsão. Luiza morreu. Minha vida ficou negra como parecia ter sido a última pincelada do quadro, com ares de mal acabado, sem um fim
definido. Apenas o negrume e a dor. Luiza repousa em paz. E vive em minhas memórias.
Lembrei do vazio incógnito que estava me incomodando. Olhei pela casa: tudo estava intacto. Nada mudou. Era a mesma casa em que Luiza corria saltitando nas manhãs de domingo. Os móveis, a cor das paredes, o chinelo, o quadro. Lembrei do que faltava, e desse vazio que não existia nos últimos anos. Faltou a promessa. A promessa de que ia continuar tentando viver com sua ausência, como fazia todas as viradas de ano. Não prometia ganhar mais dinheiro. Nem perder peso. Muito menos começar um novo projeto. Prometia apenas continuar.
Baixei a cabeça, e antes mesmo da primeira lágrima rolar do meu rosto e atingir o chão, já tinha feito a promessa. Mas prometi, dessa vez, não fazer promessas de ano novo.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Ano Novo

Por Fernando Thadeu Fonseca dos Santos

Entramos em mais um ano novo. Mudança de vida geralmente é o lema principal no começo do ano. Mas sinto que a palavra mudança não cai muito bem. Mudar. Parece que tudo que fizemos até então está errado, caminhando para o lado contrário. E na verdade deixamos de fazer, pois tudo que plantamos colhemos. É dessa forma que devemos encarar e não tomar como mudança, e sim agir. Temos que fazer todos os dias, são todos iguais, e não é a troca de ano que vai diferenciar. Somos a diferença.Acabamos condicionados a um pensamento datal comum como a páscoa, o dia dos pais ou o natal. Todos dias são normais como os outros. Se fizermos a diferença todos os dias não precisaremos esperar pelo fim de ano para correr em direção de nossos objetivos.Hoje é um bom dia pra fazer acontecer, amanhã também, e depois e depois. "Ano novo vida nova". Prometer não é fazer. Se estamos passando por problemas diversos, não é porque o ano não será bom, ou porque o ano passado foi horrível, e sim porque perdemos o controle da situação. Cada um tem a sua vida para cuidar, e por vários motivos acabamos nos desprendendo do que nos importa, e ficamos perdidos em um ano com 365 dias para buscarmos nossas oportunidades de vida melhor.Existem sim dias de sorte e de azar, mas todos tem. Somos todos iguais, assim como os dias, os anos e as esperanças. Viver bem é uma esperança comum. Principalmente no começo do ano. Todos queremos viver bem todos os dias do ano. Mas precisamos conquistar, nada é assim tão fácil. Podemos começar neste dia a lutar sem pensar que dia é, ou que ano estamos. "Ano novo luta nova".

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O projeto e seu início

Este projeto surgiu a pedido de dois alunos, Vinicius e Fábio Silva, em uma conversa de final de aula.Os dois gostariam que eu lhes ajudasse com alguns temas e posterior revisão. Passado algum tempo, em conversa com Daniel Lucas, surgiu a idéia do blog. Nos primeiros dias de 2008, resolvi experimentar e convidei os outros participantes, não só por serem ex-alunos, mas, principalmente, por conhecer a qualidade de seus textos. Estava dado o sinal.

O primeiro texto poderia ser feito a partir da escolha de duas sugestões: 1. Promessas de Ano Novo: tema bastante amplo que pode ser desenvolvido em diferentes níveis: pessoal, nacional, internacional, político, social etc.2. Freegans: pessoas que procuram viver ao máximo à margem da economia. Para saber mais, leiam
o texto da FSP.(Ana Ziccardi)
O nome Pândega quer traduzir nosso propósito: fazer o que gostamos - escrever - e trocar idéias, sem qualquer pretensão que não seja nos divertir e festejar.