terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Só em São Paulo

São Paulo me encanta. Na adolescência, eu ficava pensando que morar nessa cidade era como ter ganho na loteria. Meu bilhete premiado - a certidão de nascimento - está em frangalhos. Apesar do descuido com o documento, continuo muito orgulhoso de morar aqui. Sinto-me um privilegiado. Foi aqui que me tornei um cosmopolita sem precisar ir para Londres, Tóquio ou Nova Iorque. Foi fundamental me afirmar numa cidade cinza, caótica, enorme, multirracial e cheia de neons. Hoje não se vê tanto neon, mas eles ainda piscam sem ordem nas minhas memórias. Várias regiões do centro da cidade estão marcadas na minha lembrança.

Conheci o bairro da Liberdade tardiamente. Com 20 anos, aproximadamente, fazia um curso pré-vestibular na Rua Tamandaré e um dos amigos de sala morava lá. Nos levava para aquelas ruas movimentadas, coloridas e de postes vermelhos. Disse que num dos restaurantes japoneses havia uma garçonete que era a cara da Nastassja Kinski. À época, me saiu bem caro essa curiosidade. Mas nunca mais deixei de freqüentar o bairro, principalmente por lugares mais baratos, onde o garçom estava mais para Tião Macalé que para atrizes do cinema europeu.

E o bairro sempre tropeça nos meus dias. Ou porque a assembléia do sindicato é perto dali, ou porque estudo no mesmo bairro, ou porque alguns amigos moram na Rua Galvão Bueno. Num desses tropeços, conheci um boteco – ou restaurante, como queiram – chamado “Bentô House”.

Não consigo imaginar esse bar em outra cidade. Ele é o típico boteco brasileiro, mas enfiado no bairro japonês e que serve iguarias orientais. Os garçons são nordestinos ou descendentes, os proprietários orientais e a freguesia muito, mas muito diversa. Lá é fácil ver misturados moradores do bairro – portanto, de olhos puxados – com sindicalistas barbudos, japoneses com pinta de mafiosos, freqüentadores alcoólatras, mulheres chinesas comendo sozinhas, casais de namorados e vários mendigos pedindo dinheiro. Da última vez que estive lá, as mesas que ficam na rua tinham muitos negros. E todos de meia idade. Talvez alguma associação ou comunidade reunida. Uns dez cabeludos com camisetas de rock também faziam muito barulho nessa noite. As pessoas se cumprimentavam, indiferente da mesa de onde chegavam ou saíam. O bar pegava fogo.

Já estive lá na hora do almoço. É quente também, mas com menos álcool circulando e eles não estão para brincadeira. Logo que se entra, uma chamada avisa: “Servimos café, almoço e jantar, Happy Hour e petiscos”. Um sem fim de clientes e muito movimento por quase 20 horas por dia.

A parada durante a noite sempre foi estratégica para mim. Ele fica ao lado da Estação Liberdade do metrô. A intenção é aproveitar o papo até o último minuto antes do último trem, mas não lembro de ter conseguido chegar a tempo uma única vez. Sempre volto com algum ônibus noturno ou táxi. Ali é impossível um papo não ficar interessante e me fazer ir embora na hora certa, seja ele o lançamento de algum filme dos irmãos Cohen, seja como fazer para evitar uma ressaca ou fofocas de manicure e cabeleireiros. Tudo fica delicioso de conversar.

Não é possível cumprir horários com aquele garçom deixando rastros de odores. Guiozas, tempurás, shimejis e vinagretes de polvo e marisco não me deixam partir. E, assim, numa noite dessas, com o metrô fechado, nossa mesa era cerveja gelada e sushis. Minha amiga contava uma estória de manicure que não podia continuar sem comida e bebida. Aliás, um caso típico de um morador de São Paulo. A manicure estava preocupada com um casal gay. Ela era amiga de um deles e percebeu que tomava medicamento pesado. Transtorno afetivo bipolar, segundo ela. “E sabe por quê? Sabe? Porque ele também gosta de mulheres”. Os dois se amam, são casados, mas fazem pouco sexo. Quer dizer, um deles, pois o outro sai com muitas mulheres. “É um absurdo ele tomar remédio por causa disso", dizia minha amiga imitando a manicure. E todos nós também achamos um absurdo naquela mesa, quase no balcão já. Por que alguém tomaria remédio para afirmar a sexualidade? Mas , enfim , o tribunal provisório do Bentô House, direto do balcão sujo , não aprova a decisão do psiquiatra e reprova a resolução dos problemas através de medicamentos.

O bar fecha lá pelas duas da manhã. Infelizmente. E a moça que cuida da limpeza final ainda leva umas cantadas de um japonês com o cabelo pintado de loiro. Joga muito charme pra cima dele e joga muita água nos nossos pés. Volto para casa com a canela molhada, com o coração cheio e terno. Só São Paulo me deixa assim a essa hora. Rendido e satisfeito.


Marcelo Fabri

4 comentários:

Anônimo disse...

Marcelo, não sei se vc. nasceu aqui ou não, mas vc. é, realmente, essencialmente, paulistano. Mesmo que sua imagem possa ser confundida com um turista inglês.Assim como o Plínio, seus textos já têm a sua cara. Assim, como seu amigo, vc. tem um "dark side" que adora registrar em seus ambientes, mas, apesar da semelhança, há a diferença do tom, digamos que seu lado marginal seja mais romântico. Enfim, me identifico muito com esses pedaços da cidade também, épocas distantes de bicho-grilo, final dos anos 70 Xiiiiii, deixa para lá. Mais uma vez adorei. Preciso caprichar no próximo tema para vc. exacerbar em seu romantismo, ok ?
Beijos

Ana
Ps: romântico no melhor sentido, hein ????

Marco Aurélio disse...

Bom, muito bom. Gostei da certidão de nascimento como bilhete da loteria. E dos personagens todos do bar, deu vontade de ir lá. Só dispensaria o penúltimo parágrafo. A história do casal semigay é boa, mas quebra a fluidez do texto. Tente ler pulando esse parágrafo, note a diferença.

Fernando Thadeu disse...

Eu conheço esse bar....ahuauha...é muito interessante mesmo, mas vivo num bairro onde o que mais tem são butecos, com diferentes personagens, q ainda pretendo escrever sobre. Mas gostei de toda forma como vc descreveu. Mesmo com uma estória longa, me amarrei na exatidão das palavras e e da forma como forma colocadas.
O Marco não sabe de nada!

Zúnica disse...

Esse é, na minha opnião, o melhor texto da rodada. Ficou leve, fácil de ler, mas bem cuidado. A linguagem é bem lapidada, e as várias referências que você (sempre) faz - Tião Macalé; Natasja Kinski - dão uma personalidade a mais.

Você colocar São Paulo como agente criador de cosmopolitas pela síntese de vários grandes centros e, ao mesmo tempo, por ser uma cidade cinza, caóticamultirracial, é o qeu faltou nos outros textos, e é o que melhor satisfaz o tema proposto.

A única ressalva é que concordo com o Marco sobre o penúltimo paragrafo. Quebrou a fluidez. Se fosse mais curto, talvez funcionasse melhor.

O nome Pândega quer traduzir nosso propósito: fazer o que gostamos - escrever - e trocar idéias, sem qualquer pretensão que não seja nos divertir e festejar.