Quando viu os faróis que se aproximavam, sua vida inteira lhe passou pela mente em um instante, como um filme. E ainda sobrou tempo para uns extras. Cenas deletadas, erros de gravação, comentários, essas coisas.“Que vida besta, meu Deus…”, ele pensou, enquanto o bendito caminhão punha fim a sua miséria.
O nome Pândega quer traduzir nosso propósito: fazer o que gostamos - escrever - e trocar idéias, sem qualquer pretensão que não seja nos divertir e festejar.
terça-feira, 29 de janeiro de 2008
A vida num instante
Quando viu os faróis que se aproximavam, sua vida inteira lhe passou pela mente em um instante, como um filme. E ainda sobrou tempo para uns extras. Cenas deletadas, erros de gravação, comentários, essas coisas.“Que vida besta, meu Deus…”, ele pensou, enquanto o bendito caminhão punha fim a sua miséria.
quinta-feira, 24 de janeiro de 2008
A vida em um segundo
No dia seguinte, mais calmo (lençol quente à noite, café quente de manhã), resolvi mostrar a minha namorada o curta-metragem que a professora de português havia me enviado, sobre um garoto que sofre um acidente e fica paralisado à espera do resgate ou do fim, e fiquei com aquilo na cabeça. Pensei em como a vida pode se perder ou se transformar em um segundo. Numa hora você é uma jovem bonita, estudante de história, que canta numa banda de Heavy Metal, voltando de férias com sua família feliz e, de repente, Bam! O comercial de Doriana vira um pesadelo, e você está presa naquele segundo, um segundo eterno sem se levantar. E, aos que estão do lado de fora do teu segundo, presos num sem-tempo de sofrimento entre a esperança e o pessimismo, só resta olhar para deus - aquele mesmo que, em melhores épocas, você costuma negar -, que leve em conta juventude e risos altos.Em um segundo você se dissolve numa eternidade solitária. Ao fundo, só mesmo o som sádico do marcador cardíaco.
Para que eu possa ter, pelo menos, um segundo de paz.
terça-feira, 22 de janeiro de 2008
Ramerrão*
***
A vida hoje e o sabor que ela tem
Livre arbítrio (Visita de domingo)
Mas ali no banco, em frente ao gerente da minha conta, eu não tinha nenhum lugar para ficar sozinho e falar alto comigo mesmo. As criaturinhas ficariam envergonhadas de aparecer em um local público. Disse ao engravatado que pensaria e traria uma resposta. O seu olhar foi impiedoso, pior que o de uma mãe irritada, para soltar uma frase indigesta: “você foi demitido e cada dia que protela para investir seu dinheiro, ele vale menos”.
Assim como o personagem de Nicholas Cage, no filme “Despedida em Las Vegas”, resolve beber até morrer depois de ser demitido, eu decidi gastar toda a minha indenização e os meus direitos trabalhistas até minguá-los e não trabalhar. O ombro esquerdo levou a partida. O diabinho não usou um argumento tão sofisticado, mas me fez refletir que a criatividade é o que move minha profissão. Portanto, resolvi me entregar aos prazeres. Sentir o cheiro do bairro em horários desconhecidos até então, deixar a brisa da madrugada bater no meu rosto, ver os dias amanhecerem, chegar tarde nos bares, filosofar no meio do dia com algum amigo e não ter hora para me entorpecer. Afoguei o gerente de banco pelo ombro direito.
Dois meses como “bon vivant” e não tive nenhuma crise de consciência. Nem lembrei que pudesse ser uma escolha atrevida, egoísta e que pudesse ser recriminada. Mas quando vi Renatinho de longe, parado numa esquina perto de casa, o germe da dúvida colocou a cabeça para fora.
Ele era dono de um típico boteco do centro, na rua Nestor Pestana. Azulejos coloridos, balcão de fórmica, cheio de bebuns e prostitutas, freqüentado por atores, jornalistas, músicos, atrizes e alcoólatras de escritórios da redondeza. Minha cara. Depois que o pai morreu, o bar durou pouco na mão dele e do irmão. Não o vejo há dez anos, um pouco menos. Uma ex-namorada nos afastou. Tânia chegava mais cedo que eu no bar e ele aproveitava o meu atraso para ser simpático e gentil. Depois de um tempo, para ser abusado e lascivo o suficiente e levá-la ao fundo do bar. Sabe-se lá quanto tempo e quantas escapadas foram necessárias até decidirem ficar juntos.
Ali, parado na esquina, os seus amigos o chamavam de Renato, sem o diminutivo. Dez da manhã. Eu chapado e ele vestido para o futebol. Mas por que perto da minha casa? São Paulo é tão grande. O sol fazia cócegas no meu pensamento. Não conseguiria me controlar e ia rir sem parar quando estivesse na frente dele. Ia ser desastroso. Ainda escutava as músicas da festa que acabara de sair. Não queria um papo nostálgico para afastá-las, aliás, eu não estava em condições de conversar.
Tentando atravessar a rua, quase fui atropelado. O barulho da freada chamou atenção dele e de todos, naturalmente. Não me abati pelo ocorrido e, como previsto, comecei a rir enquanto ele falava alto um monte de coisa de quem mata as saudades. Eu não ouvi nada. Parecia que eu ainda estava na festa com a música alta e seus lábios se mexiam produzindo um som bem menor. Nem sei como cheguei em casa depois desse rápido encontro.
À noite, acordei com o seu telefonema. Reclamou bem humorado que eu ainda estava em casa. Eu havia combinado de passar na casa deles hoje mesmo. Sim, eles ainda formavam um casal. Segundo ele, prometi até levar um sorvete e só não decidi o sabor porque não parava de rir.
- Você vem ou não vem? – perguntou.
Por um instante achei que precisaria papear sozinho com meus ombros. A primeira centelha de insegurança desde o desprezo ao gerente de banco. Era natural esse sentimento. Eu encontraria Tânia que me trocou por alguém que sempre escolheu por trabalhar. O que eu diria a eles quando me perguntassem sobre trabalho? “Veja bem. Um diabinho me soprou na banheira, pelo ouvido esquerdo, que devo aproveitar o máximo que a vida e o dinheiro têm a oferecer”. Digo pelo menos quando pretendo voltar a trabalhar? Que piada! Que se danem. Engulam com ou sem água minha resposta.
- Em quarenta e cinco minutos chego à sua casa. - respondi com firmeza.
Olhando aquele casal com seus três filhos, fiquei orgulhoso das minhas decisões. Toda insegurança foi embora quando entrei naquela casa. Tânia desfigurada pelo matrimônio, nem trabalhava mais. Só cuidava da casa e dos filhos. Renatinho só fazia alguma caridade a ela quando resolvia cozinhar macarrão com molho de caixinha ou a levava em algum shopping suburbano. As crianças davam tanto trabalho, que quase não conseguíamos conversar. O que era bom, de certa forma. Não queria profundidade.
Eu tive a impressão que o passado ficou tão distante para eles que talvez tenham esquecido que era comigo que Tânia namorava. Mas ela não deve ter esquecido que sua escolha à época era casar e ter filhos. A escolha de Renatinho nunca me interessou. Com as crianças chorando me despedi aliviado. “Até à próxima!”, menti.
Um táxi me deixou na porta da próxima farra, na Praça Roosevelt, muito perto da Rua Nestor Pestana.
Um segundo
Ana Clara tinha cinco anos. Precoce, conseguia ter uma compreensão incomum das coisas que aconteciam ao seu redor. Era linda e tinha cabelos cacheados, amarelos como o sol. Aprendeu a ler aos três anos. E aos três e meio conseguia ler um livro infantil sozinha antes de dormir. Sua história preferida era a da Chapeuzinho Vermelho. Seus olhos eram azuis, azuizinhos como uma piscina. Duas pedras de água marinha que cintilavam contra a luz. Sempre que lia alguma história, fazia, ali mesmo, na cama, uma análise crítica para a mãe. Assustava às vezes, principalmente quando levantava questões ligadas ao âmago do ser. Coisas que nem sua avó conseguia pensar. Tinha a pele alva e seu corpo esguio parecia que ia se quebrar a cada passo que dava. Gostava de roupas simples, de criança, e sua cor preferida era o vermelho.
Se quando morremos a vida inteira passa na nossa cabeça em um único instante, para Ana Clara esse tempo parecia eterno. Não poderia se arrepender das coisas ruins que fez. Afinal, era muito jovem para ter qualquer maldade no coração. Não poderia lamentar as oportunidades perdidas. Muito menos justificar seus erros.
De que uma menina de cinco anos de idade lembraria em seu último suspiro, então? A Barbie fada que ganhara na semana passada, talvez? Ou quando escreveu o próprio nome no papel pela primeira vez. E a visita ao zoológico? Aquele leão realmente dava a impressão de que a engoliria a cada bocejar!
Escolheu, em sua inocência, em sua ingenuidade sem igual, pensar na bailarina que rodopiava ao som do porta-jóias da mãe. Quando crescesse, queria ser bailarina. Estava decidida, e não pensava em ser outra coisa se não bailarina. Daquelas que rodopiam ao som de porta-jóias. O frio chegava e fazia tremer todos os ossinhos daquele corpo alvo e delicado. O som do porta-jóias titilava em sua mente. E a imagem da bailarina rodopiando graciosamente, como num plié eterno. E o frio, e a música, e os ossinhos, que poderiam se quebrar a cada passo. A boca do leão era tão grande que a engoliria inteira em uma só mordida. Mas e se o leão fosse também bailarino? E se também dançasse graciosamente, como uma bailarina que roda pliés eternos em um porta-jóias?
Entre tantos pliés de bailarinas e leões dançarinos de bocarras imensas, passou-se finalmente o último segundo. E como o som de qualquer porta-jóias não dura para sempre, a canção foi cessando, foi aumentando o frio que fazia tremer todos os ossinhos daquele corpo de porcelana que poderia quebrar a cada passo, foi embaçando a vista do poste de luz, e foram se misturando lágrimas e gotas da chuva fina que caía.
Ana Clara. Cinco anos de idade. Fatalmente precoce. Ingênua e inocente como jamais se vira. Questionava as complexidades do ser humano, mas, durante seus últimos momentos de vida, só conseguia pensar no som do porta-jóias, na bailarina de pliés eternos e no leão de bocarra imensa. A história que mais gostava era a da Chapeuzinho Vermelho. E era vermelha também sua cor predileta. Alva era sua pele, azuis seus olhos brilhantes, amarelo seu cabelo e negra a noite chuvosa em que tudo aconteceu.
sexta-feira, 18 de janeiro de 2008
A escolha do amor
segunda-feira, 14 de janeiro de 2008
Segundo tema (Ainda uma experiência...)
- o primeiro tem como título Faça sua escolha, narração de Pereio e texto de Fernando Bonassi. Aparentemente, pode parecer apenas tiração de sarro, mas prestem atenção no início, principalmente.Veja o curta;
- o segundo, O lobinho não mente, é do ano passado e tem um ar tragicômico.Veja o curta.
Os temas ainda permitem a diversidade de gêneros, seria interessante ( é só uma dica) se optassem por um gênero diferente do primeiro. Espero que gostem !
Em tempo, a partir de agora, nosso colega Plínio Zúnica, do blog Crimidéia, passa a integrar o grupo
Freegans
Promessa de Ano Novo
Ela estava em seu quarto, sentada na beira da cama, olhando pela janela. Lembrava das comemorações de final de ano. Ceia de Natal em casa, almoço na casa dos avós, muitas risadas durante o réveillon… Listava também, em sua mente, metas para 2008. Em outro momento, passaria tudo para o papel, juntamente com o planejamento, o step by step para realizar cada objetivo. “A vida passa muito rápido”, pensou, “está mais do que na hora de cumprir minhas promessas e realizar os meus desejos”
sexta-feira, 11 de janeiro de 2008
Concorrência desleal
Mas não me faltava mais nada para terminar de foder com porra da minha vida! Vejam só: sou um mendigo, moro na rua, vivo cheio de cachaça na idéia, ando todo mijado e cagado, sou apedrejado por moleques e corro a toda hora o risco de morrer queimado por algum nazista pouca coisa mais revoltado. É pouca desgraça? Pois então, agora piorou. Já conto.
Foi na semana passada, ou retrasada, sei lá. Acordei, joguei o papelão pro lado e estiquei o braço para pega a garrafa de pinga — café-da-manhã é uma refeição sagrada. Um calor filho da puta, e eu andando com um pé descalço no asfalto quente. Mas era preciso: dia de feira, de abastecer o bucho, ingerir vitaminas. Fui, então, até a feira para pegar minha xepa semanal. O pessoal já estava desmontando as barracas, e não tinha mais ninguém comprando nada. Faz parte do meu acordo com os feirantes: eles guardam alguma coisinha para mim que, em troca, não apareço durante o horário de movimento, para não espantar a freguesia. Fui chegando, encontrei o Zé Banana, que vende tomates.
— Aê, Zé véio! Alguma coisa aí pra mim?
— Xi, rapaz, hoje não. Aquele pessoal ali já pegou tudo.
Olhei para onde ele apontava. Um grupo de sete ou oito garotas e rapazes, todos com cortes de cabelo esquisitos e brincos no nariz, carregava sacolas de plástico cheias de verduras e legumes. O Banana me explicou: tinham percorrido as barracas pedindo sobras e, não contentes com isso, agora faziam a xepa na ponta da feira. “São frígans“, me explicou o Banana. São contra o capitalismo, o sistema, o caralho a quatro. Por conta disso, andam por aí catando coisas nas feiras, na rua, no lixo.
— Peraí, Banana. Cê tá me dizendo que esses viadinhos fazem a xepa porque querem?
— É isso aí.
Filhos de uma quenga… Eu aqui todo fodido, comendo o pão que o diabo amassou com o cu, e os cornos catando comida no lixo porque acham bonito. Moram numa casa aqui perto, com caminhas confortáveis, luz elétrica, água encanada. Que beleza! Queria ver é eles morarem na rua, os putos!
Fiquei olhando o movimento do grupo. Eles riam, conversavam, assoviavam música ruim. Depois de um tempo, uma das meninas notou minha presença. Abriu um sorrisão, veio andando na minha direção e me estendeu uma sacola cheia de verduras.
— Pode pegar, moço. Não faça cerimônia.
Olhei aquela sacola estufada, cheia de comida, e a barriga roncou. Mas o orgulho foi mais forte:
— ENFIA NO CU, VADIA!
E saí andando. É uma questão de princípio: não aceito esmola da concorrência.
Oásis
No alto da colina, o prédio mais curioso lembra uma mesa: um grande bloco de concreto repousando sobre quatro colunas, com um imenso vão livre embaixo. Para mim, é a mostra mais assombrosa do engenho e sabedoria dos antigos. Lá dentro, grandes espaços vazios e muitos quadros nas paredes. Representam pessoas, paisagens, animais, objetos. Alguns não representam coisa alguma: são borrões de tinta, formas geométricas. Não gosto desses últimos; me perturbam um pouco. Os outros são bonitos. Passo minhas tardes aqui dentro, observando os quadros. Leio as assinaturas, sei o nome de todos os pintores. Gosto de um tal Monet. Suas paisagens são meio esfumaçadas e parecem, de alguma forma, mais leves do que as outras. É como olhar a avenida deserta lá fora sob o sol do meio-dia, a paisagem ondulante, deformada pela onda de calor que sobe do asfalto rachado.
Mas é claro que não posso falar sobre isso com os outros. Somos freegans, e devemos ter orgulho disso. Os quadros são fruto da velha sociedade capitalista, cruel e desalmada. A sociedade dos antigos, nos ensinam os mestres, foi construída com base na opressão e na exploração do homem pelo homem. As pessoas trabalhavam para consumir de forma descontrolada, adquirindo desejos criados e impostos pelo sistema dominante. Havia o conceito de dinheiro, pedaços de papel e metal que representavam valores arbitrários. Pessoas matavam e morriam pelo dinheiro, famílias se desintegravam, nações entravam em colapso, populações eram dizimadas. Havia infelicidade, insegurança, depressão.
Então veio a Grande Revolução Freegan. Os primeiros freegans eram ridicularizados por suas idéias, avançadas demais para aquele tempo. Viver fora do sistema parecia loucura. Mas eles eram fortes, confiantes, e sua convicção influenciava cada vez mais pessoas. O grupo cresceu, cresceu, e acabou tomando o poder em várias partes do mundo. A antiga cidade de São Paulo, onde vivemos hoje, foi declarada Nação Freegan Independente, e suas fronteiras com o resto do país, ainda chafurdando no capitalismo, foram fechadas. O nome antigo, que guardava relação com a antiga religião (opressora e aliada ao capitalismo) foi trocado por Oásis. Isso foi há muitos anos, ninguém sabe ao certo quantos. Os mestres dizem que Oásis é a pérola freegan do mundo, que devemos nos orgulhar de nosso país livre das amarras capitalistas. Eu sei que devia pensar como os outros, viver feliz, enfim, ser um verdadeiro freegan. Só que não consigo.
Quanto mais eu ando pela velha cidade e vejo as obras dos antigos, mais questiono o modo de vida freegan. As ruínas da avenida lá fora, por exemplo, devem ter sido prédios belíssimos, espantosos. As carcaças enferrujadas um dia foram automóveis, cortando velozmente as ruas da cidade. Imagino a agitação, as luzes, as cores, o movimento. Sim, somos mais saudáveis e mais conscientes.
Mas valerá a pena? O que plantamos já não basta para nosso próprio sustento. Alguns dissidentes abandonaram o vegetarianismo, e saem à noite para caçar cães, capivaras, gatos, ratazanas do tamanho de gatos. De tempos em tempos, helicópteros de entidades internacionais sobrevoam a cidade, lançando caixas com mantimentos que são disputadas a tapa. Os mestres, que tanto falam em orgulho freegan, nada dizem sobre a ajuda internacional. Para mim, é uma aceitação tácita de esmolas. Somos os parasitas do mundo.
Esse tal mundo free
O sujeito não entendeu nada quando chegou do trabalho e se assentou à mesa do jantar. Nela, havia uma pessoa a mais: um garoto de roupas bem simples, mas limpas, chamado Gaio. Era o novo namorado da filha adolescente e fora conhecer os sogros. Até aí, tudo normal.
Ele já tinha visto algo sobre isso na TV. A esposa continuou explicando e disse que aquela mesa era servida em respeito à filhinha e ao Gaio, ambos novos convertidos à ideologia freegan. Explicou também o motivo daquele par de bicicletas no quintal. “Sei, sei... essa gente prefere não poluir”, rosnou ele. E, enquanto sorvia o caldo quente, foi ruminando um inconformismo sem fim.
A certa altura, aquele pai resolveu quebrar o silêncio. Perguntou ao Caio (“É Gaio, papai! Gaio!”)... perguntou ao Gaio o que ele faria para sobreviver e sustentar uma família. O menino, de corpo franzino, olhos bem miúdos e voz finíssima, garantiu que sustento não era problema e foi, em seguida, relatando os números do desperdício em uma capital como São Paulo. Segundo ele, alimento bom para o consumo é facilmente achado em meio ao lixo da grande metrópole. “Lixo!”, gritou o pai surpreendido. E lá se foi uma involuntária cusparada de sopa pela mesa toda.
O sujeito não entendeu nada quando chegou do trabalho e se assentou à mesa do jantar. Nela, havia uma pessoa a mais: um garoto de roupas bem simples, mas limpas, chamado Gaio. Era o novo namorado da filha adolescente e fora conhecer os sogros. Até aí, tudo normal.
Chegadas as panelas transbordantes de comida, algo mais estranho ainda. O cardápio era sopa. Sopa e água. Nada de cerveja nem refrigerante. Reclamou à esposa. Esta explicou tão diretamente que o sujeito quis morrer: aquele era um jantar freegan, típico de uma tribo de mesmo nome que adora produtos ditos “naturebas” e não aceita nada que seja industrializado.
Ele já tinha visto algo sobre isso na TV. A esposa continuou explicando e disse que aquela mesa era servida em respeito à filhinha e ao Gaio, ambos novos convertidos à ideologia freegan. Explicou também o motivo daquele par de bicicletas no quintal. “Sei, sei... essa gente prefere não poluir”, rosnou ele. E, enquanto sorvia o caldo quente, foi ruminando um inconformismo sem fim.
Bem de noite, no reduto do quarto, a esposa tentava acalmar o infeliz. Dizia que aqueles meninos freegans pregavam uma ideologia bonita de se ver e ouvir. Eram só paz, combatiam o consumo exagerado, não queriam poluir e, além disso, gostavam de viver em comunidade, uns ajudando aos outros. E lembrou ao marido contrariado que aquela era a sociedade com a qual a geração deles, ainda jovem, tinha sonhado. O sujeito, enfim, se tranqüilizou um pouco. Para ele, ideal aquele menino não era, mas devia ser boa pessoa. Bem no fundo. E a esposa contente prometeu pagar a compreensão com uma reconfortante massagem nas costas. Daquele jeito que ele adorava.
Quem define os sonhos (Briga pelo telefone no domingo à tarde)
Peguei um ônibus e deixei São Paulo correndo. Pensei até em fazer um sorteio dentro da rodoviária e a sorte me trazer alguma cidade como destino. Mas não era a hora de arriscar tanto. Precisava mesmo descansar e sumir com todos os sintomas que a cidade deixou grudado. Tudo me incomodava, até barulho de chinelo arrastando pelo chão. A intenção era trocar o apito de alarmes de automóveis por pássaros e ondas batendo nas pedras. Largar as coisas assim, de uma hora para a outra, não é difícil para mim. Confio no meu tempo livre e não nas horas trabalhadas; não acredito no lucro.A parada final foi uma vila de pescadores perto de Parati. Nada de televisão, telefone e sapatos. Uma casinha de sapé me serviu de hospedagem. Fogão a lenha no lugar de frigobar, uma janela com vista para o mar no lugar de TV a cabo e um galo para me acordar no lugar do celular. Esses prazeres são indispensáveis. Eu não considero que seja um paraíso, algo inalcançável ou privilégio de poucos. Eu acredito mesmo no ócio criativo como ideal de vida intercalado com o trabalho sem idolatria, como diria o pensador italiano Domenico de Masi.Num domingo, fiz uma pequena visita à Parati. Entrei num restaurante e, tomando um café expresso, assistia involuntariamente um telejornal. Apesar de ter acionado um filtro auditivo para não escutar os repórteres e apresentadores, reconheci André na tela. Ele não deu entrevistas, mas aparecia em alguns planos de câmera, sempre ao fundo. “Eles adotaram o estilo de vida ‘Freegan’ e negam o trabalho e o capitalismo” dizia o repórter. “Belos ideais” pensei sorrindo. A câmera mostrava jovens recolhendo restos de uma feira livre no ABC paulista. A narração do repórter era cheia de preconceito e ironia, sempre sinalizando que os jovens não queriam trabalhar e muito menos pagar por serviços como aluguel, transporte e outros serviços públicos. Mesmo quando alguém do grupo relatava as suas propostas, “apoiamos a generosidade, o interesse social, a liberdade, e a ajuda mútua”, o melhor comentário do repórter era: “O sonho desses jovens esbarra na realidade. Um ideal romântico como esse é possível ser concretizado?”. A reportagem também queria denotar que os jovens tiravam a oportunidade de pessoas com baixa renda de aproveitar o famoso fim de feira.Fiquei muito contente pela escolha de André. Ele era um recente namorado da minha filha, Lorena. Desde que eu o conheço já era “vegan”, ou seja, não consome nenhum tipo de produto animal, nem ovos, nem leite e roupas de couro e similares. Ela é ovolactovegetariana há alguns anos e começou a introduzir receitas vegans na sua dieta.Um orelhão na frente do restaurante me incentivou a ligar para Lorena. “Lorena, vi o André na TV!” gritei. Ela bufou forte e quase me xingou:- Você viaja para fugir das coisas e vê TV? Eu não quero falar do André. Ele não sabe o que quer. Eu não como nada que tenha sacrifício animal, mas não sei se quero mudar o mundo agora.Percebi que meu apreço pelo ideal “freegan” não era unanimidade naquela família. Minhas leituras na juventude, eventos na universidade, filosofia barata em botecos, juras de amor, entre outras coisas, eram um ensaio para chegar nesse estágio de liberdade. Negar o consumo desenfreado, adotar sistemas de autogestão inspirados nos anarquistas, se alimentar sem precisar de crueldade e do sangue dos animais, era tudo o que eu queria e não tive “colhões“ para encarar. Fugir de uma cidade para a outra e curtir era uma coisa, mas mudar radicalmente de posição era preciso coragem e determinação. E o jovem André tinha. Lorena não reconheceu isso e muito menos apreciou. Era uma espécie de egoísmo que tomava conta dela aos 19 anos de idade? O que essa sociedade embutiu na sua cabeça que eu não consegui imunizar? Telefonei novamente e brigamos mais uma vezEra uma situação confusa. Eu, o pai, incentivando que ela viva num ideal ético que a maioria dos pais quer distância; eu, o pai, frustrado com as posições caretas e capitalistas da filha; eu, o pai, forçando a barra pelo telefone sem estar na pele dela; eu, o pai, admitindo a própria covardia de não aplicar as utopias das conversas de boteco.André, com seus 20 anos, não tem a verdade superior. Nem eu. Talvez tenhamos um senso humanista exagerado e uma noção que “Os novos baianos” já cantaram: “o mundo é oval e a vida é uma” na música “Caia na estrada e perigas ver”. A pressa em ver o mundo mudar fez André útil e prático. Fará a sua parte mostrando essa “anarquia vegan”. Quanto a mim, essa pressa não me encorajou o suficiente. Só sirvo de alto falante, ou papagaio de pirata.Na volta desse ensaio de rebeldia aqui perto da areia e do mar pedirei desculpa à Lorena. Quem sou eu para cobrar que ela seja aquilo que não consegui ser? Quero conhecer os sonhos de Lorena e que sejam com ou sem André.De volta à vila, aproveito para pedir uma canção ao hippie que está ao meu lado com um violão. É do Caetano Veloso, mas ficou conhecida na voz de Gal Costa, chamada “Divino maravilhoso”. Digo para ele que me ajudará a refletir. Ele toca com algumas dificuldades na letra, mas eu e sua amiga o ajudamos: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte(...)tudo é perigoso, tudo é divino e maravilhoso”.
A promessa
Cheguei em casa meio tonto, com um gosto de fel na boca. Uma mistura de cerveja, cidra barata e fumaça de fogos de artifício. Aquilo que causou náuseas; o estômago estava embrulhando. Limpei os pés no tapete - como de costume - e entrei. Tudo era o mesmo.
A casa continuava intacta. A mesma do ano passado. Também, pudera! Fazia apenas algumas horas que tinha saído para curtir a noite de réveillon. Por outro lado era um novo ano. Algo ali precisava mudar. Não na casa em si, na disposição dos móveis ou na cor das paredes. Olhando em volta, sentia um quê de bagunça e era muito difícil discernir se a faxina precisava acontecer dentro ou fora do meu ser.
Não passava de duas da manhã. Alguns fogos retardatários insistiam em estourar nos céus, com persistência e intervalo de tempo irritantes. Enquanto mudava de roupa, notei o quadro no centro de uma das paredes da sala. Nunca o abstracionismo fez tanto sentido para mim. Consegui ver toda a minha infame existência naquele conglomerado de amarelos, vermelhos e cáquis. Cada curva, cada mudança de tom me fez relembrar algo na minha vida.
Cheguei mais perto. O verde me fez lembrar a infância, quando corria livre pelas pastagens da fazenda do tio Jerônimo, no interior. Passava todas as minhas férias de verão por lá. Perseguia sagazmente filhotes de ovelha e de quando em vez era também perseguido por cabras furiosas. Sorria muito, chorava manhoso por um agrado ou presente e sempre, sempre estava com algum machucado ou arranhão. Devo ter sido o moleque mais espoleta da terra.
Mas e esse sentimento. Continua. O que será que está faltando?
O vermelho, em uma curva, sobrepondo maioral as outras cores, me lembrou do primeiro encontro com Luiza. Eu tinha uns quinze anos. Ela, uns treze. Foi amor à primeira vista. Naquele momento, em que ela tropeçou no meio da sorveteria e carimbou minha cara com sorvete sabor morango, eu tive a certeza de que ela ia ser minha mulher para o resto da vida. Tomamos muitos outros sorvetes naquelas férias e nas outras que a sucederam.
Se pelo menos pudesse saber o significado desse vazio dentro de mim.
O primeiro beijo que dei em Luiza aconteceu em um dia ensolarado, debaixo de uma figueira marrom como a reta que cortava abruptamente o quadro na diagonal. Lembro como se tivesse acabado de acontecer. Ela corou e se riu das cócegas que os pelos que começavam a nascer na minha cara faziam. Tinha um sorriso lindo. Criava covinhas em suas bochechas rosadas. Ela ria meio de lado, como quem esconde um segredo. Ria como anjo, sua mãe costumava dizer.
Serão saudades de Luiza? Então por que não aconteceu nos outros anos?
Crescemos, nos formamos e casamos. O vestido de Luiza era longo e branco, como a pincelada geniosa do pintor no canto do quadro. Olhei pro lado e vi aquele par de chinelos azuis. Eles estavam ali nos últimos anos sempre parados, como esperando ela chegar, tirar os sapatos do lado de fora da casa e gritar comigo antes de calçá-los, por conta de meu péssimo modo de pisar com o pé sujo no chão limpo.
Os chinelos eram azuis como a água que levou minha mulher embora dessa vida. E era azul também o tom que mais me chamou a atenção naquele quadro. Me lembro exatamente do dia em que cheguei em casa e todos estavam a minha espera, entreolhavam-se como se sorteassem em uma roleta maldita quem iria me dar a notícia. Meu pai me abraçou e chorou aos soluços. Não entendi nada. Por que aquele clima fúnebre? Onde estava Luiza? Não souberam me explicar muito bem. Um erro de cálculo, a água da piscina, uma convulsão. Luiza morreu. Minha vida ficou negra como parecia ter sido a última pincelada do quadro, com ares de mal acabado, sem um fim
definido. Apenas o negrume e a dor. Luiza repousa em paz. E vive em minhas memórias.
Lembrei do vazio incógnito que estava me incomodando. Olhei pela casa: tudo estava intacto. Nada mudou. Era a mesma casa em que Luiza corria saltitando nas manhãs de domingo. Os móveis, a cor das paredes, o chinelo, o quadro. Lembrei do que faltava, e desse vazio que não existia nos últimos anos. Faltou a promessa. A promessa de que ia continuar tentando viver com sua ausência, como fazia todas as viradas de ano. Não prometia ganhar mais dinheiro. Nem perder peso. Muito menos começar um novo projeto. Prometia apenas continuar.
Baixei a cabeça, e antes mesmo da primeira lágrima rolar do meu rosto e atingir o chão, já tinha feito a promessa. Mas prometi, dessa vez, não fazer promessas de ano novo.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2008
Ano Novo
Entramos em mais um ano novo. Mudança de vida geralmente é o lema principal no começo do ano. Mas sinto que a palavra mudança não cai muito bem. Mudar. Parece que tudo que fizemos até então está errado, caminhando para o lado contrário. E na verdade deixamos de fazer, pois tudo que plantamos colhemos. É dessa forma que devemos encarar e não tomar como mudança, e sim agir. Temos que fazer todos os dias, são todos iguais, e não é a troca de ano que vai diferenciar. Somos a diferença.Acabamos condicionados a um pensamento datal comum como a páscoa, o dia dos pais ou o natal. Todos dias são normais como os outros. Se fizermos a diferença todos os dias não precisaremos esperar pelo fim de ano para correr em direção de nossos objetivos.Hoje é um bom dia pra fazer acontecer, amanhã também, e depois e depois. "Ano novo vida nova". Prometer não é fazer. Se estamos passando por problemas diversos, não é porque o ano não será bom, ou porque o ano passado foi horrível, e sim porque perdemos o controle da situação. Cada um tem a sua vida para cuidar, e por vários motivos acabamos nos desprendendo do que nos importa, e ficamos perdidos em um ano com 365 dias para buscarmos nossas oportunidades de vida melhor.Existem sim dias de sorte e de azar, mas todos tem. Somos todos iguais, assim como os dias, os anos e as esperanças. Viver bem é uma esperança comum. Principalmente no começo do ano. Todos queremos viver bem todos os dias do ano. Mas precisamos conquistar, nada é assim tão fácil. Podemos começar neste dia a lutar sem pensar que dia é, ou que ano estamos. "Ano novo luta nova".
segunda-feira, 7 de janeiro de 2008
O projeto e seu início
O primeiro texto poderia ser feito a partir da escolha de duas sugestões: 1. Promessas de Ano Novo: tema bastante amplo que pode ser desenvolvido em diferentes níveis: pessoal, nacional, internacional, político, social etc.2. Freegans: pessoas que procuram viver ao máximo à margem da economia. Para saber mais, leiam o texto da FSP.(Ana Ziccardi)