quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A vida em um segundo

Por Plínio Zúnica
Estava, na terça feira à tarde, a dar os últimos toques num texto para um projeto da faculdade, algo na linha de “faça sua escolha”. Era sobre um advogado alcoólatra que brinca de roleta russa num cassino. Estava ruim de verdade, mas minha namorada tentou me convencer de que valia a pena publicar. Sendo assim, revia os últimos detalhes, quando recebi o recado.Estavam voltando das férias em Salvador. Imagino que deva ter sido um cachorro na estrada, ou um bêbado metido a Nelson Piquet que cruzou o caminho. O carro deveria estar bastante rápido, pra ter capotado desse jeito. O pai, a mãe e o irmão não tiveram maiores complicações. Ela estava mal. Quando a prima de Aline disse as três letrinhas, elas soaram em câmera lenta no meu cérebro, e ficaram coladas ao ouvido como uma coisa viscosa que escorre pela espinha e se instala naquele canto profundo da gente, aonde ficam as idéias fixas, os medos de infância e as obsessões maníacas. O meu coração, compassado, batia U.T.I – U.T.I - U.T.I ...
Aline é uma ex-namorada, alguém que foi especial pra mim. Se tornou uma grande amiga, e uma das primeiras pessoas que eu quis que conhecesse a mulher que escolhi pra casar, num show absurdamente trash na USP. Enquanto ouvia a notícia no telefone, lembrava de como ela é viva, de como gosta de dançar, de como ri alto, muito alto. Toma cerveja como homem, escreve cartas bonitas e não liga pra o que os outros estão pensando. De repente, a visão dela numa cadeira de rodas me fez perder a firmeza nas pernas, como se fosse eu quem estivesse com um coágulo no cérebro, bacia quebrada, tornozelos quebrados e três lesões na coluna.Quando desliguei o telefone, tomei um copo de água, me amaldiçoei por ter parado de carregar o frasco metálico do santo whisky. Acendi um cigarro e liguei pra casa da minha namorada. A voz dela me confortou, mas o coração continuava a ressoar as três letras, como se fosse um tambor de guerra anunciando que eu deveria correr ou cair.Fui passar a noite com minha ruiva, mas no caminho saltei do ônibus e entrei numa lan house, dessas que têm umas cabines de telefone. Disquei primeiro para o serviço de informações. Depois, para o hospital. O atendente não tinha muitas informações, mas ela já não estava entubada e estava fora da linha de perigo de morte. O atendente foi um anjo com sotaque baiano, que baixou um pouco a voz do meu Carlos Gardel particular. Em seguida, liguei para mais alguns conhecidos. Alguns se preocuparam muito, outros já estavam muito distantes daquele distante tempo em que éramos unidos, uma patota, como dizia minha avó. Decidi que ficaria chateado com os dissidentes mais tarde, quando tudo se acalmasse.
No dia seguinte, mais calmo (lençol quente à noite, café quente de manhã), resolvi mostrar a minha namorada o curta-metragem que a professora de português havia me enviado, sobre um garoto que sofre um acidente e fica paralisado à espera do resgate ou do fim, e fiquei com aquilo na cabeça. Pensei em como a vida pode se perder ou se transformar em um segundo. Numa hora você é uma jovem bonita, estudante de história, que canta numa banda de Heavy Metal, voltando de férias com sua família feliz e, de repente, Bam! O comercial de Doriana vira um pesadelo, e você está presa naquele segundo, um segundo eterno sem se levantar. E, aos que estão do lado de fora do teu segundo, presos num sem-tempo de sofrimento entre a esperança e o pessimismo, só resta olhar para deus - aquele mesmo que, em melhores épocas, você costuma negar -, que leve em conta juventude e risos altos.Em um segundo você se dissolve numa eternidade solitária. Ao fundo, só mesmo o som sádico do marcador cardíaco.
Aos que lerem este texto, peço-lhes que dispensem um segundo de suas habituais tarefas. Só por um segundo, desliguem o telefone e esqueçam das janelas de MSN. Só por um segundo, larguem seus cigarros, esqueçam a reunião de amanhã e rezem. Não lhes peço um Ave-maria, que eu mesmo já não me lembro mais como era. Dediquem apenas um segundo, um pensamento bom qualquer serve, pra que ela possa se levantar dessa cama e caminhar.
Para que eu possa ter, pelo menos, um segundo de paz.

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O nome Pândega quer traduzir nosso propósito: fazer o que gostamos - escrever - e trocar idéias, sem qualquer pretensão que não seja nos divertir e festejar.