terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Um segundo

Por Vinicius Peixoto


Ana Clara tinha cinco anos. Precoce, conseguia ter uma compreensão incomum das coisas que aconteciam ao seu redor. Era linda e tinha cabelos cacheados, amarelos como o sol. Aprendeu a ler aos três anos. E aos três e meio conseguia ler um livro infantil sozinha antes de dormir. Sua história preferida era a da Chapeuzinho Vermelho. Seus olhos eram azuis, azuizinhos como uma piscina. Duas pedras de água marinha que cintilavam contra a luz. Sempre que lia alguma história, fazia, ali mesmo, na cama, uma análise crítica para a mãe. Assustava às vezes, principalmente quando levantava questões ligadas ao âmago do ser. Coisas que nem sua avó conseguia pensar. Tinha a pele alva e seu corpo esguio parecia que ia se quebrar a cada passo que dava. Gostava de roupas simples, de criança, e sua cor preferida era o vermelho.
Se quando morremos a vida inteira passa na nossa cabeça em um único instante, para Ana Clara esse tempo parecia eterno. Não poderia se arrepender das coisas ruins que fez. Afinal, era muito jovem para ter qualquer maldade no coração. Não poderia lamentar as oportunidades perdidas. Muito menos justificar seus erros.
De que uma menina de cinco anos de idade lembraria em seu último suspiro, então? A Barbie fada que ganhara na semana passada, talvez? Ou quando escreveu o próprio nome no papel pela primeira vez. E a visita ao zoológico? Aquele leão realmente dava a impressão de que a engoliria a cada bocejar!
Escolheu, em sua inocência, em sua ingenuidade sem igual, pensar na bailarina que rodopiava ao som do porta-jóias da mãe. Quando crescesse, queria ser bailarina. Estava decidida, e não pensava em ser outra coisa se não bailarina. Daquelas que rodopiam ao som de porta-jóias. O frio chegava e fazia tremer todos os ossinhos daquele corpo alvo e delicado. O som do porta-jóias titilava em sua mente. E a imagem da bailarina rodopiando graciosamente, como num plié eterno. E o frio, e a música, e os ossinhos, que poderiam se quebrar a cada passo. A boca do leão era tão grande que a engoliria inteira em uma só mordida. Mas e se o leão fosse também bailarino? E se também dançasse graciosamente, como uma bailarina que roda pliés eternos em um porta-jóias?
Entre tantos pliés de bailarinas e leões dançarinos de bocarras imensas, passou-se finalmente o último segundo. E como o som de qualquer porta-jóias não dura para sempre, a canção foi cessando, foi aumentando o frio que fazia tremer todos os ossinhos daquele corpo de porcelana que poderia quebrar a cada passo, foi embaçando a vista do poste de luz, e foram se misturando lágrimas e gotas da chuva fina que caía.
Ana Clara. Cinco anos de idade. Fatalmente precoce. Ingênua e inocente como jamais se vira. Questionava as complexidades do ser humano, mas, durante seus últimos momentos de vida, só conseguia pensar no som do porta-jóias, na bailarina de pliés eternos e no leão de bocarra imensa. A história que mais gostava era a da Chapeuzinho Vermelho. E era vermelha também sua cor predileta. Alva era sua pele, azuis seus olhos brilhantes, amarelo seu cabelo e negra a noite chuvosa em que tudo aconteceu.

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