domingo, 2 de março de 2008

Cidade catótica

Por Marco Aurélio Gois dos Santos

Há quem diga que, por conter tantas culturas e identidades diferentes, São Paulo é uma cidade sem identidade. Pura bobagem. Tudo bem, é verdade que não há comida típica paulistana, nem música popular paulistana, nem folclore paulistano. Mas há — e isso ninguém pode nos tirar — um comportamento profundamente arraigado entre os habitantes de São Paulo, e que pode ser considerado a grande característica comum: o ato de tirar catota no trânsito.

nose_picking Se você que lê estas linhas está agora ao volante, solicito encarecidamente que PARE DE LER e preste atenção na porra do trânsito. Caso contrário, peço que dê uma olhada para o lado da próxima vez que parar num semáforo. Arrisco dizer que há sete ou oito chances em dez de que seu vizinho de trânsito esteja com pelo menos a falangeta dentro de pelo menos uma narina. Uma colega gaúcha diz que os catoteiros foram seu maior choque ao trocar as ruas de Porto Alegre pelas da terra da garoa. Certa feita, disse a um sujeito de Nova Iorque que o povo de São Paulo era adepto do nose picking. Ele disse que isso era louvável. Só depois, quando o cara já tinha voltado para a civilização, me dei conta de que, graças à minha pronúncia maravilhosa, ele tinha entendido no speaking. Deve estar até hoje contando aos amigos sobre a admirável introspecção dos paulistanos.

Muito bem, alguns podem dizer , torcendo (ou cutucando) o nariz, que a sondagem dígito-nasal não é privilégio exclusivo dos paulistanos. É verdade. Mas pessoas de outras plagas são mais discretas: retiram-se da vista alheia para praticar o ato, ou pelo menos o fazem disfarçadamente, aproveitam aquela coçadinha no nariz e tal. Os motoristas paulistanos, por sua vez, catoteiam com empáfia, quase com orgulho. Deve ter alguma coisa a ver com a poluição, é verdade. Imagine a quantidade de fuligem que nos entra pelas narinas após uma hora e meia de tráfego intenso na Marginal Tietê. Aquela sujeira toda irrita as vias respiratórias, se mistura com o muco nasal e... Bom, acho que não preciso explicar em detalhes.

Não podemos, no entanto, botar a culpa somente no ar imundo da cidade. Eu diria que a causa maior é a relação que o paulistano tem com o carro. Para nós, o automóvel não é só um meio de transporte: é extensão de nosso lar, é nosso domínio, nosso habitat, nosso reino sobre quatro rodas. Sentimo-nos totalmente à vontade dentro de nossas máquinas: cantamos, batucamos no painel, falamos sozinhos, soltamos gases e — claro — catamos catota. O interior do carro nos dá a ilusão de privacidade, e é muito fácil esquecer que estamos cercados por vidro translúcido.

E assim, à vontade, vão os paulistanos catoteando pela vida. Uns são recicladores conscientes, e tratam de consumir imediatamente tudo o que tiram do nariz. Outros têm vocação para decorador, e distribuem suas catotas em belos padrões pelo painel do carro, no volante, no teto. Há aqueles que são tímidos e escondem seu produto sob o banco (se as lojas de carros usados dessem 10 reais de desconto por catota encontrada sob o banco do motorista, estariam todas falidas). Existem também aqueles desapegados, que se desfazem de suas bolinhas com um jeitoso piparote. E nem olham para trás.

Já prevejo a reação de alguns cidadãos indignados da metrópole, prontos a me atirarem pedras (ou catotas). Antes que o façam, porém, peço que reflitam por um momento. Finalmente nós, os paulistanos (que somos baianos, paranaenses, japoneses, portugueses, italianos, lituanos, coreanos, judeus, acreanos, libaneses), temos algo que nos une. Isso há de valer alguma coisa, não?

10 comentários:

Anônimo disse...

Gostaria de saber se o autor do texto faz parte da lista de catoteiros...Não, não responda.
Marco,seus textos são muito bons, vc. escreve bem (e sabe disso)e sempre caminha por "ruas" poucos freqüentadas.Por isso, vou caprichar nos próximos temas para fazer vc. se atrever a um poema, um conto romântico ou uma crônica no melhor estilo mexicano. Que tal ? Me diga: o que vc. acha que precisa melhor na sua produção ?
Tia Zicca

Marco Aurélio disse...

Opa! O catotismo é esporte que pratico desde a mais tenra infância.
Obrigado pelas palavras bondosas, Tia Zicca, mas não sou merecedor delas. Preciso melhorar tudo, desde a lapidação do texto (eu escrevo, publico e nunca mais leio, feito os desapegados que se desfazem de suas catotas) até a organização das idéias. E preciso atingir um estilo próprio também. Estou com 33 anos e ainda não consegui nada disso. Tic tac tic tac tic tac tic tac tic...

Fernando Thadeu disse...

Jogue a primeira pedra quem nunca tirou uma catotinha da fuça e escondeu no lugar mais secreto possível.....ahuauha....muito engraçado esse seu texto Marco. Não vejo a hora de poder escrever COMUVC.

Zúnica disse...

Adorei o texto. Primeiro pelo refinamento de vocabulário. Não precisa ser parnasiano, mas dá uma sonoridade, um refinamento, até uma veia humorística a mais, ler palavras como "Papirote", "falangeta", "catoteando"... Na mesma linha, entra a brincadeira com o "nose picking - no speaking". A graça do texto não fica só no fato de ser uma crônica sobre catota, mas em ser catota afrescalhada e orgulhosa!

Outra coisa que gosto é o modo como é um assunto aparentemente limitado, banal, e se estende numa interminável sucessão de cenas e hipóteses. Gerou até, na minha cabeça, instantaneamente a estorieta do bigode-barricada nos comentários do teu blog!

O texto é excelente. A única observação é que, sendo o tema "São Paulo", a estrela principal ficou ofuscada pela catota.

Ah, e não entendi como, no segundo parágrafo, alguém poderia estar lendo isso ao volante. Mas tudo bem, é só imaginar o trânsito das marginais que o Thadeu pega e fica simples imaginar as pessoas navegando na net em pleno horário de rush.

Marco Aurélio disse...

Ei, Zúnica, o tema proposto não era a cidade. Era "Isso só acontece em São Paulo", ou qualquer coisa assim. Os catoteadores são um fenômeno típico paulistano, então acho que me ative totalmente ao tema.

Zúnica disse...

De certa forma você está certo. mas, veja pelo meu prisma. Quando o tema foi proposto, fiquei pensando "apachorra, que raio qeu eu posso dizer que SÓ acontece em São paulo?", e me meti num embate filosófico com meu eu-lírico, que resultou em um olho roxo e duas noites dormidas no sofá. E por que isso, se eu poderia simplesmente escrever sobre algo "de paulista"? Ora, porque eu posos definir quase qualquer coisa como "coisa de paulista". Se você tivesse definido como um fenômeno tipicamente paulistano algo que remetesse ao cotidiano da cidade, como "catotas entopem bueiros, que causam enchentes na marginal", ficaria mais amarrado ao tema.

Zúnica disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Zúnica disse...

Mas é fato, ficou legal pra cacete, ah, ficou!

Obs.: Pode escrever "cacete" aqui?

Marco Aurélio disse...

Não, caralho!

Marcelo Fabri disse...

Opa! um comentário excluído? O que aconteceu?

Gostei bastante do texto. O bom humor dele não se limita ao assunto, mas nas tiradas com palavras mais rebuscadas. Elas tornam a leitura mais engraçada ainda. Gosto desse sarcasmo.
O ponto alto foi o mal entendido do americano, nossa...ri muito!

O nome Pândega quer traduzir nosso propósito: fazer o que gostamos - escrever - e trocar idéias, sem qualquer pretensão que não seja nos divertir e festejar.